segunda-feira, 8 de dezembro de 2008



Sou apaixonada por mim!
E daí? Sei quanto me custa valer à pena.

atravessar os rios dos dias não é tarefa qualquer
é preciso o equilíbrio da montanha
o silencio de sereia que o poeta lembrou
cantarolar canções de Carly, Billie e Jobim
- cada uma no momento exato
correr às cores de VanGogh, Frida, Vermeer, Gauguin
quando a manhã morre de tédio e sabe-se do sol ainda longo
e, mais que tudo, é preciso passar pela noite seca de palavras
sem ceder à tentação do veneno dos jesuítas.
Márcia Leite

















sábado, 29 de novembro de 2008


Só no meu, sem despedida


Quando a alma se cala e o vento pára nos galhos da palmeira [que ainda assim balança ao tempo] e da auracária que abriga a teia que alimenta a aranha que teceu o sonho, o pé de amor(a) amadurece os frutos que me ofereces à boca (dos beijos onde guardas teus segredos) que já não adoçam as palavras que me pensas.

Tanto desejei noites de inverno no alto de um pequeno monte coberto de verde, sob um teto de vidro por onde estrelas nos enfeitariam de eternidade [numa cama macia de simplicidade (entre algodões rústicos tecidos nos teares dos dias cúmplices)], noites de sonho que hoje silenciam ao abrigo da tempestade escrevendo folhas de desalento.

O sentimento que trava a língua - e mil vezes mata o coração que ama - esconde e aconselha à vida que implora:“Acorda, refaça o sonho que foi embora.”

A fantasia - que também cega e destrói por pura vaidade - me impele à sobrevivência, girando a roda sem pressa, voltando o tempo que diz: “Siga, avance mundo afora.”

Resta-me a estrada desconhecida, os ensinamentos do buda, o Amor do avatar que louvo [e que me guarda sempre que imploro por nova vida e sorrisos livres]. Meus pés acostumados à terra, sem calçados que os limitem, caminham e sangram a canção que não desisto nas letras das músicas que te dedico.

Dentro dos teus olhos sãos (não esses, os de outras vidas), para dentro deles e do teu coração (quando envelheceres), é onde guardarei para sempre o meu amor que sobreviverá, mesmo longe, a ti mesmo.

Por tua alma antiga que conheço (entre as linhas do teu próprio desconhecimento) deixarei gravada no meu peito aquilo que poderia ter sido nossa história. Só no meu, sem despedida.

Márcia Leite

quarta-feira, 26 de novembro de 2008


Vim na nuvem dos saltimbancos
desci na Terra feminina
[pensando ventos e palavras]
numa tarde com cheiro de maresia
nasci enluarada e arredia
perdi-me dos companheiros
ao longo da estrada
às vezes os reconheço à luz da madrugada
alguns deles em delírio nas sarjetas
por eles passo e sorrio
mas sei que já não me vêem
nem lembram do caminho
condenados estão à insanidade
no planeta solidão
sigo os dias registrando passarinhos
besouros rosas borboletas
assombros trovões
lamentando vez ou outra
que nada nos foi avisado antes da descida
me perguntando se o trampolim
não poderia ser dourado
um salto direto à felicidade imaginada no azul
armas de paciência nos foram fornecidas
alguns não as souberam usar
eu me defendo como posso
durante esta impermanência
que deveria ser construção
mas não é
destruição se mostra cotidiana
mesmo entre nós
nômades do espaço
não há memória que sustente
só a consciência do fracasso
e o por quê de tudo nunca se completa
no trapézio solitário
sem os braços dos companheiros
[ perdidos ao longo da estrada]
vagueio o olhar pelo céu estrelado
na saudade do depois das nuvens
- onde eu, privilegiada
lembro existir o Todo
o Inteiro
o Nada.


Márcia Leite, in Versos Descarados, Oficina Editores, 2007

Almas e rosas fiéis



almas não emitem sons
apenas ouvem
os contrastes aparentes
nada mais são que disfarces
de almas que fogem da revelação
almas são eternas como o fogo
e fiéis como o botão da rosa
que se abre ao olhar do outro



uma alma me espera
me desafia me testa
me olha (quando lhe peço)
almas fiéis são como aroma
das rosas que rego
Márcia Leite

terça-feira, 21 de outubro de 2008


Gostaria de acreditar, como Clarice, que ‘dou para o mal’.
Seria muito mais leve carregar culpas e devoções mal exercidas.
As velas arderiam por mais tempo à cabeceira
As lágrimas da parafina seriam bem-vindas queimando os dedos.
Aceitaria com resignação as mentiras de hoje
- penitência a cumprir
Uma visão mística seria bem-vinda clareando a madrugada.
Terços e terços se revezariam na minha garganta até o deserto esperado, onde talvez encontrasse um oásis dentro da falsidade das noites.
Se eu acreditasse...
Márcia Leite


Alongo-me entre os galhos da roseira,
arranhando os ânimos amortecidos pelas mentiras.
Mentiras que matam a vontade de rosas.
Mas apenas por um instante.
No seguinte, já me reconheço flor,
e desabrocho
com cheiro de manacá.

Márcia Leite

domingo, 25 de maio de 2008

Batatas


Olhava as batatas como quem olha Deus e descascava-as como se fossem pêssegos, sempre cantarolando uma canção cujo nome não se lembrava. A única variação do ritual noturno era o avental azul, novinho. Aposentara o antigo, companheiro resistente, de tecido emborrachado com estampas de abacaxis, que existia desde o Dia das Mães, quando as crianças ainda eram adolescentes.
Sentia-se estranhamente feliz com o avental novo. Comprara-o naquela manhã com um sentimento misto de culpa e excitação, que provocou um ligeiro tremor nas mãos quando esperava sua vez na fila do caixa.
A mesa já posta, talheres brilhando, aguardando a família faminta. Foram chegando. Os dois filhos conversando e rindo de alguém que tinham encontrado no elevador, o marido tossindo aquela bronquite crônica, resmungando baixinho.
Ninguém lhe dirigia um olhar mais interessado, aliás, ninguém parecia ouvir o que falava nas suas tímidas tentativas de uma conversa à mesa.
Emudeceu com o tempo. Mantinha no rosto uma congelada expressão de satisfação num estranho sorriso. Mas aquilo era tudo que entendia de felicidade: um sorriso estranho enquanto olhava a família devorar em cinco minutos as batatas redondas, quase perfeitas, preparadas com precisão e paciência.
Após o jantar todos se levantavam, ainda sem lhe dirigir um olhar mais demorado, e partiam para seus universos particulares enquanto ela lavava a sujeira do mundo entre super-novas de detergente e galáxias inteiras de restos.
Até àquela noite... Naquela noite de ritmo lento um som novo invadiu a cozinha: uma voz masculina cantando um bolero!
As mãos pararam no ar esquecendo pela primeira vez, em décadas, as batatas. A voz invasora seduziu a mulher em mudez opcional e trouxe lembranças de tardes dançantes, quando ainda não usava aventais, e, sim, vestidos vaporosos, saltos altíssimos, cabelos em penteados elaborados ao modo dos filmes americanos da época; quando não tinha os sessenta e tantos anos marcados na pele, mas vinte e poucos deles brilhando no olhar.
Ouvindo a voz ela reviveu antigos sonhos, onde seu destino feminino parecia fadado aos amores e não àquelas noites embatatadas de ingratidão e indiferença. Despiu o avental e seguiu a voz hipnotizadora até o corredor do andar de baixo. Bateu à porta da voz e quando esta se abriu, ela, ainda em mudez, sorriu, e o cantor solitário - porque tratava-se de um viúvo, cuja única companhia eram os discos - sensível como só os amantes de um bom bolero sabem ser, acolheu-a imediatamente, sem perguntas, como só os homens sabem fazer.
A partir daquela noite, Alice não mais descascava as batatas com tanta precisão. Fazia-o agora como quem se obriga; a louça do jantar ficava sempre esquecida na pia até a manhã seguinte.
A mulher saia todas as noites, logo depois do jantar, mas ninguém nunca perguntou aonde ia.
Márcia Leite

O gavião e a Deusa



A bela ave sentia uma certa preguiça naquele sexto dia de inverno do ano de 2006, uma terça-feira chuvosa. Pensando bem, desde o dia do Solstício ele se sentia estranho. O céu mostrava-se indiferente, não ajudava em nada. Toda vez que abria os olhos (e as asas) o vento soprava mais forte, arrepiando seu dorso de uma forma inusitada. Pressentia algo novo no ar. Seu olho não costumava se enganar. Avistou a presa, luminosa, arredia, sorridente e simpática. Na testa dela brilhava uma luz azulada, no ponto exato do tal terceiro olho das histórias antigas que seu pai contava. Ele bem que tentou, mas não conseguiu equilibrar o vôo e a pegada, súbita e eficiente, que já lhe rendera medalha de ouro na competição para gaviões peso-ligeiro no ano de 1975. Quando jovem sabia muito bem como se livrar dessas sensações de perda de controle. Simplesmente voava por cima de todas. Agora, na maturidade, sentia-se como um adolescente que ainda sequer iniciara o curso de “Vôos certeiros para rapinas iniciantes”. Muitas presas se ofereciam (os campos, em todo mundo, andavam repletos de presas solitárias nesta última safra) aos olhos de gaviões, águias, falcões, corujas e até dos lobos. Mesmo alguns lobinhos recém-saídos da adolescência, que mal conseguiam correr em silêncio, andavam se dando bem nas temporadas de caça da última década. Mas ele se decidira por aquela presa. Em vão.
Enfim, o que sabemos é que o vôo do gavião foi diferente naquele dia. O sol que repentinamente coloriu o céu, em vez de clarear sua visão turvou-a. Ele não conseguiu alcançar a caça pretendida. Sem entender a dificuldade do momento, recolheu-se, irritado, pensando em marcar uma consulta com a águia, cuja sabedoria o fizera compreender muitos dos impedimentos que lhe aconteceram durante toda sua vida.
A presa em questão sorriu, misteriosa, assistindo a retirada do gavião, lembrando que estavam exatamente no período (de quatro em quatro passagens completas do zodíaco) quando a Deusa encarnava no terceiro sopro do vento à esquerda do *gavião-real, iniciando a peregrinação pelo país tropical para vistoriar os domínios do feminino que ainda seguiam a Tradição nestas latitudes calientes. Todas as súditas brasileiras da Deusa se tornavam invulneráveis aos ataques de qualquer gavião durante os doze dias de peregrinação da visitante do Olimpo ao Brasil. Era um pacto firmado, desde que o mundo é mundo, entre os deuses e seres alados de qualquer dimensão. Isto a isentava de culpa pelo acontecido. E a ele também. Mas aquele gavião parecia não conhecer essa história...

*Reza a Tradição que o gavião-real é o único representante legal de Hermes sobre os céus do Brasil. Foi indicado após reunião realizada no próprio Olimpo, na época da organização do mundo como nós o conhecemos até hoje. Sua candidatura suplantou, de longe, a pretensão do urubu-rei. Dizem que o urubu-rei retirou-se da reunião blasfemando contra a Deusa, incitando os outros urubus e corvos, parte de seu séqüito, a gritarem palavras de ordem, do tipo ‘abaixo a discriminação!’, contra o Comitê de Cargos, Representações e Sucessões. Por isso, de acordo com decreto da Deusa, apoiada pelo próprio Zeus, foi condenado, assim como todos de sua espécie, a comedor de carne passada do ponto.
Márcia Leite
Imagem: lh3.google.com/.../Armando%20alcázar.jpg

terça-feira, 13 de maio de 2008

Maio de Mãe


Mãe é como se fosse um país onde a gente se guarda pra crescer. Nos mostra a primeira estrela, o primeiro luar. Quando você cresce te fala dos seus sonhos de menina só pra desmistificar a santa; pra se aproximar. Te deixa ir quando chega a hora e te recebe de volta, toda vez. Te ensina musiquinhas de perder medo, a cor da rosa e o calor do sol. Te faz poeta antes mesmo de te ensinar a falar. Segura na tua mão quando tropeças mas também te dá as costas quando é tempo de levantar sozinho (mas de alguma maneira misteriosa, mesmo aí, não te perde de vista, porque nunca se sabe o tamanho da queda...). É delas a mão mais suave e o cheiro mais gostoso que a gente consegue lembrar. E para elas coloco aqui um trecho do Dindinha (porque mãe não é só gerar, é ‘maternar’) da Elisa Lucinda: “Com ela desfrutei de bonanças, compreendi e aceitei temporais. Com ela dei musica à minha voz, fôlego aos meus princípios, inícios aos meus finais. Pois, de joelhos estou por ela, voando estou com ela, grata que sou a ela...”


Márcia Leite

Imagem: Salvador Dali

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Filhos


É uma dor crescendo
Um aperto no útero
Um desconsolo no peito
Saudade dos meus meninos
Crianças
Que eu podia ninar

Crianças
As embalamos no colo
Secamos suas lágrimas
Sopramos o remédio
Direto na dor
São nossas as mãos que procuram
Quando tropeçam nas pedras

Crescidos choram escondidos
Rejeitam tua mão
Tuas palavras
São adultos
Não te reconhecem mais


Murcho o olhar sob a chuva
Embaçando a montanha
Que na rigidez de seu prumo
Me acolhe
Nesses dias de Inquisição
Não me condeno à fogueira
Fiz o melhor (que conhecia)

Retiro da farmácia o mercúrio
Que todas as feridas me ardam
Sangrem
Rasguem
Mas imploro cura para as deles.
Márcia Leite
(imagem: William Adolphe Bouguereau)

quarta-feira, 30 de abril de 2008

À uma mãe

(à poeta Andrea Paola)


Não há lágrimas
nem palavras
para essa dor
- sabemos todas
o cravo dilacerou teu peito
rasgou teu ventre
secou tua voz

não
não há lágrimas
nem palavras
para essa dor

o que há, mulher de honra
é o amor Daquele que nos acompanha
e te abrigará do frio deste dia
sob o manto da Mulher Vestida de Sol.
Márcia Leite

terça-feira, 29 de abril de 2008

No pio da coruja


A serenata
(Adélia Prado)

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natal como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

A solidão e seu reconhecimento se misturam e formam um cordão de isolamento da lua que brilha no céu. A sabedoria, nem sempre benévola, invade a noite e as perguntas não cessam. O momento é ideal para mudanças, tomada de posição, mas falta coragem. Os sinais evidentes de sofrimento próximo se apresentam, um após o outro, mesmo assim, ela se pergunta por que ainda não consegue ceder à sensatez. As perguntas martelam o peito como pequenas bigornas na pedra. Lentamente, constantemente. Nada mudará. A lucidez espremida em seu último espaço, insiste: considere os sinais!

Desiste. Não há o que possa fazer. Lamenta.

O coração quebra no pio da coruja, mas a razão domina a essência estabelecendo parâmetros de sobrevivência. Retira o homem de seu presente e o considera passado. Mas ela também sabe que o passado tem pernas longas e braços sedutores. É polvo disfarçado de boto, górgone disfarçada de sereia. Ela acredita que a função do passado deveria ser crescimento, mas neste caso o crescimento em outros passados não se mostrava suficiente para que não sofresse a despedida. Mas resistiria.

A noite empalidece nos braços da madrugada, e à Júlia - conhecedora do que se disfarça - só resta o murmúrio de uma oração de fortalecimento até o sol que nunca falha (e que se considera merecedora), aprendiz esforçada que tem sido.
Márcia Leite
(imagem: Salvador Dali - A mulher de costas)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Assim seja



[Te ofertei vinho, pães quentinhos
Toalhas bordadas, lençóis de linho
Reguei rosas, dálias, maçãs
Para enfeitar tuas manhãs.
Desci estrelas cadentes nas nossas noites
Aqueci teu coração com minhas mãos.
Mas tu - que teme o novo
Prefere o fundo poço dos antigos vícios
Erros repetidos.
Adeus, meu querido
Volto ao ouro das palavras
E à prata dos livros.]

Márcia Leite




Tenta-se o impossível nessa via de mão única. O encontro deseja-se eterno, mas não será. Revela-se a delicadeza, mostra-se a beleza, mas nem todos vestiram olhos de ver. Dispõe-se o vidro de perfume, com rótulo antigo, ao lado do cinzeiro de cristal azul, fake, bonito, como talvez fake seja o que se viu antes, apenas reflexo de um desejo.
Não é culpa dos olhos que não vêem a beleza do ovo de vidro alaranjado, do Senhor da Humildade em madeira, dos livros lidos, e dos não lidos, entre pequenas lascivas sereias de porcelana branca e bowls de carnival glass da década de 30, arrematados em leilões de outros tempos, outro homem, que certamente - sabem os olhos que vêem - foram orgulho de alguma mulher antiga, muitas décadas antes desta que ali está, no presente, tentando, inutilmente, dividir a delicadeza das imagens, parte de quem ela é, abrindo, escancarando, a porta para a entrada de um amor delicado como a madrepérola da grande concha que um dia foi despejada pelo mar entre algas e lixo na areia de alguma praia caribenha (ela gostava de pensar assim).

Na verdade não há culpa, nem erros, há apenas a diversidade. Diversidade de aprendizado, de escolhas, de intenções, de necessidades. Estar aqui e não estar, submeter-se a olhos desinteressados era tarefa auto-imposta. Na verdade desejava o amor e fingia não enxergar o engano. O olhar que desejava não percebia a beleza do sol entrando pela janela e iluminando uma única almofada jogada no canto do sofá, ainda amassada (moldura do quadril feminino que ali repousou) ou a pequena deusa hindu, com um cisne a seus pés, reverenciando o Amor na forma de um falo entre as mãos.

O falo...Ah, o olhar que se tenta seduzir com a beleza das pequenas coisas, das canecas de chá, das comidinhas, dos cálices cor de rosa transbordando cabernets, sauvignons e desejos entre velas e incensos é, e certamente sempre será, um olhar-falo, que só enxerga a fenda entre coxas femininas.

A delicadeza se ressente, se magoa. Mas não é ela mesma que insiste?

Ao mesmo tempo, ainda insistia, desesperadamente, despertar o coração dentro do outro peito. Mas aquele coração pulsa apenas ao piscar do olhar-falo. Não há futuro. Roga por coragem e caminhos novos.

Que assim seja até o próximo olhar que cruzar com o dela no solstício.

Márcia Leite

(imagem: Matisse)

domingo, 27 de abril de 2008

Nova Maria


'Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não. '
(Sophia de Mello Breiner )

Maria abre os olhos lentamente e sorri para o céu emoldurado pela parte superior da janela de guilhotina. Sabe que a montanha está por trás de sua cabeça, no mesmo lugar onde sempre esteve e sempre estará ( mesmo quando seus olhos não mais puderem ver e sua memória passar a viver na dos outros).

Vira o rosto, ainda deitada, para o copo com água sobre a mesa e sorri quando vê que a água filtrada está gaseificada como uma espécie de néctar angelical. Senta-se no sofá onde escolheu dormir àquela noite, estende a mão para o copo e bebe todo seu conteúdo de uma vez, acreditando que a água curará o que ainda precisa de cura. Estica o olhar de esguelha através das portas de vidro do terraço para verificar se há olhares curiosos na construção ao lado. Levanta-se, puxando a camiseta branca para baixo, e, na passagem até a escada em direção ao primeiro andar da casa, sorri, novamente, um bom–dia para a sua montanha-rainha coroada por uma pirâmide verde.

Desce as escadas, sentindo as pernas um pouco enrijecidas, e pensa: Deus, envelheço!
No banheiro admira-se, sempre, da enorme quantidade de líquido que sua bexiga consegue reter durante a noite. Vai até a cozinha, prepara o café, abre a porta da geladeira procurando o queijo e cantarolando baixinho The man I love. Senta-se à mesa da sala e inicia o novo dia, café na mão e a incrível sensação de liberdade conquistada batendo, feliz, no peito.
E ela sabe, após tantos anos, exatamente o que fazer com ela.
Márcia Leite

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Augusta, a Musa.

Minha tia , inacreditavelmente, está de partida para os campos do Senhor. E, com certeza, para os campos reservados aos que desceram na mesma nuvem de Van Gogh. Campos exuberantes, coloridos, vibrantes, como a Vida deveria sempre ser, do jeito como o Criador a idealizou. Mas Ele nos deu o tal do livre arbítrio...
Minha musa Augusta, tia e madrinha, inspiração. Consolo dos meus olhos e pensamentos, nas horas tristes, respirando sua vitalidade e poder de superação e me fortalecendo neles. Meus risos e gargalhadas nas horas de descontração.
Teve dois filhos, perdeu-os cedo e, ninguém percebia que carregava-os na memória (longa, 85 anos de memória de vivências e amores) e no coração. Os que escolheram o caminho amargo da crítica, do julgamento, da insensibilidade, chegavam a acusá-la de 'nunca ligou muito para eles'. Alguns sofrem 'para fora', para o público, adoram a postura de vítimas da Vida. E sem nenhuma real tragédia, apenas alguns contratempos, contabilizada nos seus dias...Alguns reclamam de tudo, de dor de cabeça, do cachorro que late no vizinho, da pobre da empregada que se atrasa, do pássaro que canta alto na manhã (acreditem!), e julgam, julgam, rotulam, apontam...Ela não, raríssimas vezes deixava entrever tristeza no olhar, os mais sensíveis conseguiam ouvir, entrelinhas, a dor guardada dentro do peito, como toda grande dor o é, em um ou outro comentário que escapava, do nada: "Eu gostaria que meus filhos fossem almoçar comigo todos os dias. Morar na mesma casa não daria muito certo, mas que fossem, diariamente, para o almoço ou lanche." Eu me calava ao ouvir isso, respeitando a Augusta que poucos queriam ver. As pessoas invejam a luz dos destemidos...Eu a imaginava em suas noites de solidão, chorando, escondida, a saudade. Mas ela rapidamente, engatava em outro assunto, engraçado, delirante e seguia Augusta.
Com mais de oito décadas é ainda linda, elegantíssima, vaidosa ao extremo, seus olhos jamais passaram dos vinte anos. Me contou que sua ama-de-leite fora uma cabra. Eu fiquei em extâse ouvindo aquilo e comecei a entender o mistério do eterno encantamento daquela tia. Ela dizia, e seus olhos de jade brilhavam enquanto falava: Papai mandava mamãe soltar a cabra quando eu chorava (e se não o fizesse ela arrebentaria a corda ao ouvir meu choro) e ela vinha correndo, pulava em cima da cama de mamãe e eu mamava direto de suas tetas. Sou como Rômulo, dizia ela gargalhando e brilhando toda!
Augusta montava cavalo sem sela com meus dois outros tios que já se foram, C. Augusto e J. Augusto. Cavalgavam pelos domínios da fazenda no Espírito Santo. E quando meu avô, enlouquecido, doente de tristeza pela morte dramática de seu caçula - afogado na imensa cisterna (ou o que o valha) da fazenda, largou tudo, vendendo sua parte a preço de banana, deixando a família na casa de um grande amigo - foi ela que, após algum tempo, cobrou do tal amigo do meu avô os favores que ele devia a seu pai e com o pouco dinheiro que conseguiu, aos 15 anos, botou a mãe Angélica e a penca de irmãos mais novos num trem rumo ao Rio de Janeiro e ao pai perdido. E a partir daí vem toda uma história de luta que um dia, com certeza, contarei.
Não faltou glamour na vida de Augusta. Pelo contrário, abundou. Amores teve-os aos montes. Grandes amores. Homens apaixonados, inclusive, e especialmente, um engenheiro português, pai de seus dois únicos filhos. Este, por sua vez, além de muito rico e elegante, era de uma beleza física de impressionar. Pouco me lembro dele, era muito criança, mas sua foto até hoje na cabeceira dela (apesar do último marido, apaixonadíssimo até hoje, dos últimos 40 anos) me deixa sempre boquiaberta.
Augusta gastava a rodo as 'abóbrinhas', como ela chamava o dinheiro daquela época. Uma vez, contou-me ela, gastou toda a gordíssima mesada (estamos falando dos anos antigos...) e mandou contas não pagas para o escritório do meu tio. Este chamou-a e perguntou: Mas eu não te dei muitas notas, Augustinha? Gastou tudo em quê?
- Em presentes para meus parentes e amigos. - (e era verdade, sempre foi generosa) -
Aí, rindo, imitou-o falando com o sotaque de engenheiro de Coimbra: "Mas tu és mesmo uma perdulária, Augustinha!"
Ao que, isso ela contava e contava inúmeras vezes nos últimos anos - sempre às gargalhadas - minha prima (talvez com 4 ou 5 anos na época) olhou para o pai e disse: Eu também, papai! Eu também!
E ria e ria toda vez que contava isso, explicando: Ela só via e ouvia o pai falar coisas boas para mim, então deve ter achado que aquilo era algum elogio!
Ao morrer este meu tio pediu aos filhos que cuidassem de Augusta até o final. E ambos o fizeram e ainda o fazem, mesmo depois de mortos.
Augusta, minha tia e musa, está entubada num cti. A última vez que estive com ela, semana passada, no hospital, vi seus olhos de estrela brilharem para mim, vi como falava sem parar, mesmo com aquela máscara de oxígênio pendurada no rosto. Vi também seu braço direito todo roxo, em derrames das picadas das agulhas naquela pele branca e frágil.
Chorei discretamente, como choro agora, neste momento, vendo Augusta.

O que mais dói, o mais inaceitável disso tudo é saber que Morte não combina com ela. Não deveria fazer parte da sua história, sempre acreditei que ela viveria para sempre, pois ela, sereia-rainha desta família de muitas mulheres, é a VIDA.
Márcia Leite

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Mudanças climáticas


I

Verão

No chão da sala fios de cabelos grudados na trama do tapete, emaranhados na urdidura, resistindo à morte. Entre as páginas do livro abandonado, um guardanapo com um telefone escrito, esquecido, como o dono que nunca existiu um minuto sequer além de dois ou três sorrisos, quatro olhares divertidos e cinco chopes. Lembranças distintas de tentativas de amor. Cada um ocupa o espaço condizente à passagem no roteiro da vida de cada uma de nós. Alguns se ressentem dos finais, outros aderem ao jogo e brincam artimanhas em lúdicos movimentos, que podem se prolongar por alguns meses, dependendo da época do ano (no alto verão de uma mulher livre, pouco resiste mais que umas semanas). No verão a pele arde e os decotes precisam sempre de novos olhares regados a roques e bossa-nova. Nada é melhor para refrescar a pele suada, que, rosa escuro, se irrita fácilmente (grude no corpo só a lycra do biquini!).
Se o indivíduo consegue ultrapassar o teste dos olhares, segue-se à segunda fase: toques permitidos. A consistência maior ou menor do toque importa muito no verão e é definitivamente decisiva para o sucesso da relação. Há que conseguir um toque leve, fresco como beijo pós água-de-coco, um toque animado mas sem agressividade, uma coisa meio audaciosa-tímida num olhar que, sem implorar – jamais! – , sabe pedir. Há que ter passos leves, e, se a aproximação for numa noite dançável, camisas de algodão, e mãos - grandes e másculas, sempre - bem comportadas. O sorriso tem que ser amável e farto. A voz precisa alcançar alguns tons graves na fala e no riso. Quando se consegue reunir tudo isso num homem só, pode-se até considerar uma ‘cantadinha’ discreta da parte feminina, tal como aceitar a prova do copo dele ou pedir que, por favor, tome conta de algum objeto pessoal (dela) enquanto vai 'ali, rapidinho' falar com alguma amiga repentinamente avistada no meio do povo. Daí pra frente tudo dependerá dos próximos passos (dele) e da cumplicidade do vento, que poderão ou não levá-los à proxima estação.
Márcia Leite

domingo, 13 de abril de 2008

Pam e suas compras.




Minha filha, Pam, assumindo seu primeiro cargo executivo, comprou um conjunto de mala e frasqueira 'pink'!! Quando ela me contou da aquisição, pelo msn , do seu quarto de hotel (está em viagem de treinamento para o novo cargo), respondi: Ah! Que liiindo! Me sinto muito orgulhosa da sua segurança!

E pensei comigo mesma: Minha Pam tornou-se definitivamente uma mulher. E uma mulher muito segura de si, sem temer a opinião alheia.

Imaginei-a com aquele seu rostinho ainda de menina ,toda séria e apressada, do alto de seus 1,70 e algunszinhos, magrinha, dentro do figurino novo e necessário no dia-a-dia de sua função administrativa (terninhos de todas as cores, uma Prada preta e 1 Dolce Gabbana vermelha – falou dessas por último, meio que receosa pelo exagero, creio eu...) também comprado em Sampa (compras que fez repetindo sempre para si mesma - frente aos preços “irresistíveis” que achou por lá - como me confidenciou, aos risos: foco 1, foco 1!! )] andando pelos corredores dos aeroportos arrastando atrás de si as malas totalmente delirantes/barbie/patricinhas/kitsch/'pin-upemente' PINK!! Aquela menina-mulher e suas escolhidas malas da cor de sua colcha preferida da pré-adolescência era agora uma executiva em cargo de responsabilidade numa grande rede multi-nacional. Missão cumprida!

Confesso que senti um pouco de nostalgia lembrando da menina roqueira, contestadora, vestida de preto pra baixo e pra cima em seus piercings. Aquela menina crescera muito rapidamente. Eu, como mãe, acompanhei seu amadurecimento como pessoa e mulher com muita atenção e respeito. Não faltou uma boa dose de sofrimento devido à drástica mudança de situação financeira, aos seus 18 anos, resultado da minha separação de uma forma anti-ética e até mesmo violenta - com doses de sadismo - pelo outro lado da história, mas que não vem mais, mesmo, ao caso. Hoje sei que foi um ganho para todos nós que ficamos imobilizados no primeiro momento de espanto, mas não apáticos nem descrentes da vida. Crescemos todos, juntos. Os três (eu, Pam e Juno, meu outro filho). Na verdade, somos responsáveis por tudo que nos acontece. Então, não me considero uma vítima de ninguém, talvez, e apenas, da minha própria comodidade e estado ilusório de ser de então. E, lamentavelmente, meus filhos sofreram por isso. Mas acredito que temos compromissos com a nossa própria alma. E cada um é responsável pela sua, tanto quanto o é pelo seu corpo, seu destino, suas escolhas, suas colheitas. Pronto, chega dessa parte!

Poderia encher páginas e páginas falando da minha Pam. De como foi uma guerreira silenciosa e perseverante. . De menina mimada, andando de carro importado zero quilômetro, sem preocupações financeiras, pulou para menina trabalhadora como quem pula de casa no jogo da amarelinha. Eu ainda vou às lágrimas lembrando de todos os ônibus, vans passando por favelas em guerra (e tudo isso em horários noturnos, já que todos seus empregos no início – durante 4 anos - eram no horário de 15h às 22h). Algumas vezes eu ia pegá-la às 24 h no ponto de ônibus. Depois ficamos sem carro e ela descia na rua perto de casa e vinha sozinha junto ao meu coração que a acompanhava durante todo o trajeto até a casa. Hoje, terminando sua pós - paga por ela mesma assim como a faculdade o foi - está aí, mestre em sobrevivência com muita dignidade, nenhuma lamentação. Sei que neste país ainda éramos muito privilegiadas, tínhamos onde morar o que comer e conseguíamos pagar nossa contas básicas, mas vocês, mães, certamente entendem como doía assistir tudo aquilo (sempre com uma certa culpa).

Aquela menina protegida com tempo para longos discursos rebeldes em tardes quentes de ociosidade tornou-se essa linda mulher e excelente profissional. Jamais desviou do caminho. Lutou, sem dó de si mesma, e venceu.

Te amo e te admiro muito, Pam!
Márcia Leite


Para a mulher, basta conhecer bem um único homem para entender todos os homens; enquanto que um homem nunca entenderá nenhuma mulher, mesmo que conheça todas elas. HELEN ROWLAND

Vestido Vermelho
(à Cléa)

É preciso sobreviver à carne
reforçar as doces lembranças
resgatar a alma do limbo
viver – no abraço do homem ocasional
todos os delírios amorosos já escritos
reverenciar os gozos
desobstruir a veia que os alimenta
fazer jorrar a fonte dos desejos
não respirar pausas ou arrependimentos
nem alternativas ao que se completou
dissecar os retrocessos
desistir de reencarnações
tocar a vida como se única
apostar no momento
criar um mantra delicado
(repeti-lo ao pé do próprio ouvido
nas noites sem amante)
alongar os músculos da pélvis
exercitar os gemidos noturnos
(para as próximas viagens)
deixar crescer os cabelos
às mãos do amor seguinte
não recusar eventuais parceiros de sonhos
acreditar que a lua brilha só por você
e que o sol aguarda ansioso sua vez
aceitar o ombro que se oferece
chorar a lágrima da adolescência
sorrir a piada da vida
escolher a fantasia de colombina
beijar o arlequim e o pierrô
autopsiar os medos
ser mórbida e obscura
para seduzir os complicados
lúcida e equilibrada
para os analisados
comprar uma manta de lã
para as tardes frias das carências
escalar a montanha do tempo
leve como quem dança
e ousar – sempre - um vestido vermelho
no final de um poema.
Márcia Leite

sábado, 12 de abril de 2008

Um corpo quer outro corpo
uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.

Adélia Prado

Eu, como Adélia - minha inspiração -, me confudo o tempo todo. Quero o corpo, quero a alma, quero a essência. Moderníssima, espalho que o momento é que importa, quando na verdade o que quero, no fundo no fundo, é a eternidade.
Uma amiga, seios fartos em decotes enormes, vive me dizendo: pegue as coisas boas e deixe as neuras pra lá.
Mas como conviver com outra alma e corpo sem querer lavar as neuras? A síndrome de lavadeira de almas me persegue (como se a minha própria fosse imaculada..."Ah, só eu sei das esquinas por onde andei...Só eu sei. " Isso aí é uma música, não lembro de quem.).

Márcia Leite