quarta-feira, 30 de abril de 2008
terça-feira, 29 de abril de 2008
No pio da coruja
Uma noite de lua pálida e gerânios
Desiste. Não há o que possa fazer. Lamenta.
O coração quebra no pio da coruja, mas a razão domina a essência estabelecendo parâmetros de sobrevivência. Retira o homem de seu presente e o considera passado. Mas ela também sabe que o passado tem pernas longas e braços sedutores. É polvo disfarçado de boto, górgone disfarçada de sereia. Ela acredita que a função do passado deveria ser crescimento, mas neste caso o crescimento em outros passados não se mostrava suficiente para que não sofresse a despedida. Mas resistiria.
A noite empalidece nos braços da madrugada, e à Júlia - conhecedora do que se disfarça - só resta o murmúrio de uma oração de fortalecimento até o sol que nunca falha (e que se considera merecedora), aprendiz esforçada que tem sido.
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Assim seja
Toalhas bordadas, lençóis de linho
Reguei rosas, dálias, maçãs
Para enfeitar tuas manhãs.
Desci estrelas cadentes nas nossas noites
Aqueci teu coração com minhas mãos.
Mas tu - que teme o novo
Prefere o fundo poço dos antigos vícios
Erros repetidos.
Adeus, meu querido
Volto ao ouro das palavras
Márcia Leite
Tenta-se o impossível nessa via de mão única. O encontro deseja-se eterno, mas não será. Revela-se a delicadeza, mostra-se a beleza, mas nem todos vestiram olhos de ver. Dispõe-se o vidro de perfume, com rótulo antigo, ao lado do cinzeiro de cristal azul, fake, bonito, como talvez fake seja o que se viu antes, apenas reflexo de um desejo.
Não é culpa dos olhos que não vêem a beleza do ovo de vidro alaranjado, do Senhor da Humildade em madeira, dos livros lidos, e dos não lidos, entre pequenas lascivas sereias de porcelana branca e bowls de carnival glass da década de 30, arrematados em leilões de outros tempos, outro homem, que certamente - sabem os olhos que vêem - foram orgulho de alguma mulher antiga, muitas décadas antes desta que ali está, no presente, tentando, inutilmente, dividir a delicadeza das imagens, parte de quem ela é, abrindo, escancarando, a porta para a entrada de um amor delicado como a madrepérola da grande concha que um dia foi despejada pelo mar entre algas e lixo na areia de alguma praia caribenha (ela gostava de pensar assim).
Na verdade não há culpa, nem erros, há apenas a diversidade. Diversidade de aprendizado, de escolhas, de intenções, de necessidades. Estar aqui e não estar, submeter-se a olhos desinteressados era tarefa auto-imposta. Na verdade desejava o amor e fingia não enxergar o engano. O olhar que desejava não percebia a beleza do sol entrando pela janela e iluminando uma única almofada jogada no canto do sofá, ainda amassada (moldura do quadril feminino que ali repousou) ou a pequena deusa hindu, com um cisne a seus pés, reverenciando o Amor na forma de um falo entre as mãos.
O falo...Ah, o olhar que se tenta seduzir com a beleza das pequenas coisas, das canecas de chá, das comidinhas, dos cálices cor de rosa transbordando cabernets, sauvignons e desejos entre velas e incensos é, e certamente sempre será, um olhar-falo, que só enxerga a fenda entre coxas femininas.
A delicadeza se ressente, se magoa. Mas não é ela mesma que insiste?
Ao mesmo tempo, ainda insistia, desesperadamente, despertar o coração dentro do outro peito. Mas aquele coração pulsa apenas ao piscar do olhar-falo. Não há futuro. Roga por coragem e caminhos novos.
Que assim seja até o próximo olhar que cruzar com o dela no solstício.
Márcia Leite
(imagem: Matisse)
domingo, 27 de abril de 2008
Nova Maria
Vira o rosto, ainda deitada, para o copo com água sobre a mesa e sorri quando vê que a água filtrada está gaseificada como uma espécie de néctar angelical. Senta-se no sofá onde escolheu dormir àquela noite, estende a mão para o copo e bebe todo seu conteúdo de uma vez, acreditando que a água curará o que ainda precisa de cura. Estica o olhar de esguelha através das portas de vidro do terraço para verificar se há olhares curiosos na construção ao lado. Levanta-se, puxando a camiseta branca para baixo, e, na passagem até a escada em direção ao primeiro andar da casa, sorri, novamente, um bom–dia para a sua montanha-rainha coroada por uma pirâmide verde.
Desce as escadas, sentindo as pernas um pouco enrijecidas, e pensa: Deus, envelheço!
No banheiro admira-se, sempre, da enorme quantidade de líquido que sua bexiga consegue reter durante a noite. Vai até a cozinha, prepara o café, abre a porta da geladeira procurando o queijo e cantarolando baixinho The man I love. Senta-se à mesa da sala e inicia o novo dia, café na mão e a incrível sensação de liberdade conquistada batendo, feliz, no peito.
quinta-feira, 17 de abril de 2008
Augusta, a Musa.
Augusta montava cavalo sem sela com meus dois outros tios que já se foram, C. Augusto e J. Augusto. Cavalgavam pelos domínios da fazenda no Espírito Santo. E quando meu avô, enlouquecido, doente de tristeza pela morte dramática de seu caçula - afogado na imensa cisterna (ou o que o valha) da fazenda, largou tudo, vendendo sua parte a preço de banana, deixando a família na casa de um grande amigo - foi ela que, após algum tempo, cobrou do tal amigo do meu avô os favores que ele devia a seu pai e com o pouco dinheiro que conseguiu, aos 15 anos, botou a mãe Angélica e a penca de irmãos mais novos num trem rumo ao Rio de Janeiro e ao pai perdido. E a partir daí vem toda uma história de luta que um dia, com certeza, contarei.
Não faltou glamour na vida de Augusta. Pelo contrário, abundou. Amores teve-os aos montes. Grandes amores. Homens apaixonados, inclusive, e especialmente, um engenheiro português, pai de seus dois únicos filhos. Este, por sua vez, além de muito rico e elegante, era de uma beleza física de impressionar. Pouco me lembro dele, era muito criança, mas sua foto até hoje na cabeceira dela (apesar do último marido, apaixonadíssimo até hoje, dos últimos 40 anos) me deixa sempre boquiaberta.
- Em presentes para meus parentes e amigos. - (e era verdade, sempre foi generosa) -
Aí, rindo, imitou-o falando com o sotaque de engenheiro de Coimbra: "Mas tu és mesmo uma perdulária, Augustinha!"
Ao que, isso ela contava e contava inúmeras vezes nos últimos anos - sempre às gargalhadas - minha prima (talvez com 4 ou 5 anos na época) olhou para o pai e disse: Eu também, papai! Eu também!
E ria e ria toda vez que contava isso, explicando: Ela só via e ouvia o pai falar coisas boas para mim, então deve ter achado que aquilo era algum elogio!
Augusta, minha tia e musa, está entubada num cti. A última vez que estive com ela, semana passada, no hospital, vi seus olhos de estrela brilharem para mim, vi como falava sem parar, mesmo com aquela máscara de oxígênio pendurada no rosto. Vi também seu braço direito todo roxo, em derrames das picadas das agulhas naquela pele branca e frágil.
Chorei discretamente, como choro agora, neste momento, vendo Augusta.
O que mais dói, o mais inaceitável disso tudo é saber que Morte não combina com ela. Não deveria fazer parte da sua história, sempre acreditei que ela viveria para sempre, pois ela, sereia-rainha desta família de muitas mulheres, é a VIDA.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Mudanças climáticas
Verão
No chão da sala fios de cabelos grudados na trama do tapete, emaranhados na urdidura, resistindo à morte. Entre as páginas do livro abandonado, um guardanapo com um telefone escrito, esquecido, como o dono que nunca existiu um minuto sequer além de dois ou três sorrisos, quatro olhares divertidos e cinco chopes. Lembranças distintas de tentativas de amor. Cada um ocupa o espaço condizente à passagem no roteiro da vida de cada uma de nós. Alguns se ressentem dos finais, outros aderem ao jogo e brincam artimanhas em lúdicos movimentos, que podem se prolongar por alguns meses, dependendo da época do ano (no alto verão de uma mulher livre, pouco resiste mais que umas semanas). No verão a pele arde e os decotes precisam sempre de novos olhares regados a roques e bossa-nova. Nada é melhor para refrescar a pele suada, que, rosa escuro, se irrita fácilmente (grude no corpo só a lycra do biquini!).
Se o indivíduo consegue ultrapassar o teste dos olhares, segue-se à segunda fase: toques permitidos. A consistência maior ou menor do toque importa muito no verão e é definitivamente decisiva para o sucesso da relação. Há que conseguir um toque leve, fresco como beijo pós água-de-coco, um toque animado mas sem agressividade, uma coisa meio audaciosa-tímida num olhar que, sem implorar – jamais! – , sabe pedir. Há que ter passos leves, e, se a aproximação for numa noite dançável, camisas de algodão, e mãos - grandes e másculas, sempre - bem comportadas. O sorriso tem que ser amável e farto. A voz precisa alcançar alguns tons graves na fala e no riso. Quando se consegue reunir tudo isso num homem só, pode-se até considerar uma ‘cantadinha’ discreta da parte feminina, tal como aceitar a prova do copo dele ou pedir que, por favor, tome conta de algum objeto pessoal (dela) enquanto vai 'ali, rapidinho' falar com alguma amiga repentinamente avistada no meio do povo. Daí pra frente tudo dependerá dos próximos passos (dele) e da cumplicidade do vento, que poderão ou não levá-los à proxima estação.
domingo, 13 de abril de 2008
Pam e suas compras.
E pensei comigo mesma: Minha Pam tornou-se definitivamente uma mulher. E uma mulher muito segura de si, sem temer a opinião alheia.
Imaginei-a com aquele seu rostinho ainda de menina ,toda séria e apressada, do alto de seus 1,70 e algunszinhos, magrinha, dentro do figurino novo e necessário no dia-a-dia de sua função administrativa (terninhos de todas as cores, uma Prada preta e 1 Dolce Gabbana vermelha – falou dessas por último, meio que receosa pelo exagero, creio eu...) também comprado em Sampa (compras que fez repetindo sempre para si mesma - frente aos preços “irresistíveis” que achou por lá - como me confidenciou, aos risos: foco 1, foco 1!! )] andando pelos corredores dos aeroportos arrastando atrás de si as malas totalmente delirantes/barbie/patricinhas/kitsch/'pin-upemente' PINK!! Aquela menina-mulher e suas escolhidas malas da cor de sua colcha preferida da pré-adolescência era agora uma executiva em cargo de responsabilidade numa grande rede multi-nacional. Missão cumprida!
Confesso que senti um pouco de nostalgia lembrando da menina roqueira, contestadora, vestida de preto pra baixo e pra cima em seus piercings. Aquela menina crescera muito rapidamente. Eu, como mãe, acompanhei seu amadurecimento como pessoa e mulher com muita atenção e respeito. Não faltou uma boa dose de sofrimento devido à drástica mudança de situação financeira, aos seus 18 anos, resultado da minha separação de uma forma anti-ética e até mesmo violenta - com doses de sadismo - pelo outro lado da história, mas que não vem mais, mesmo, ao caso. Hoje sei que foi um ganho para todos nós que ficamos imobilizados no primeiro momento de espanto, mas não apáticos nem descrentes da vida. Crescemos todos, juntos. Os três (eu, Pam e Juno, meu outro filho). Na verdade, somos responsáveis por tudo que nos acontece. Então, não me considero uma vítima de ninguém, talvez, e apenas, da minha própria comodidade e estado ilusório de ser de então. E, lamentavelmente, meus filhos sofreram por isso. Mas acredito que temos compromissos com a nossa própria alma. E cada um é responsável pela sua, tanto quanto o é pelo seu corpo, seu destino, suas escolhas, suas colheitas. Pronto, chega dessa parte!
Poderia encher páginas e páginas falando da minha Pam. De como foi uma guerreira silenciosa e perseverante. . De menina mimada, andando de carro importado zero quilômetro, sem preocupações financeiras, pulou para menina trabalhadora como quem pula de casa no jogo da amarelinha. Eu ainda vou às lágrimas lembrando de todos os ônibus, vans passando por favelas em guerra (e tudo isso em horários noturnos, já que todos seus empregos no início – durante 4 anos - eram no horário de 15h às 22h). Algumas vezes eu ia pegá-la às 24 h no ponto de ônibus. Depois ficamos sem carro e ela descia na rua perto de casa e vinha sozinha junto ao meu coração que a acompanhava durante todo o trajeto até a casa. Hoje, terminando sua pós - paga por ela mesma assim como a faculdade o foi - está aí, mestre em sobrevivência com muita dignidade, nenhuma lamentação. Sei que neste país ainda éramos muito privilegiadas, tínhamos onde morar o que comer e conseguíamos pagar nossa contas básicas, mas vocês, mães, certamente entendem como doía assistir tudo aquilo (sempre com uma certa culpa).
Aquela menina protegida com tempo para longos discursos rebeldes em tardes quentes de ociosidade tornou-se essa linda mulher e excelente profissional. Jamais desviou do caminho. Lutou, sem dó de si mesma, e venceu.
Te amo e te admiro muito, Pam!
Para a mulher, basta conhecer bem um único homem para entender todos os homens; enquanto que um homem nunca entenderá nenhuma mulher, mesmo que conheça todas elas. HELEN ROWLAND
Vestido Vermelho
(à Cléa)
É preciso sobreviver à carne
reforçar as doces lembranças
resgatar a alma do limbo
viver – no abraço do homem ocasional
todos os delírios amorosos já escritos
reverenciar os gozos
desobstruir a veia que os alimenta
fazer jorrar a fonte dos desejos
não respirar pausas ou arrependimentos
nem alternativas ao que se completou
dissecar os retrocessos
desistir de reencarnações
tocar a vida como se única
apostar no momento
criar um mantra delicado
(repeti-lo ao pé do próprio ouvido
nas noites sem amante)
alongar os músculos da pélvis
exercitar os gemidos noturnos
(para as próximas viagens)
deixar crescer os cabelos
às mãos do amor seguinte
não recusar eventuais parceiros de sonhos
acreditar que a lua brilha só por você
e que o sol aguarda ansioso sua vez
aceitar o ombro que se oferece
chorar a lágrima da adolescência
sorrir a piada da vida
escolher a fantasia de colombina
beijar o arlequim e o pierrô
autopsiar os medos
ser mórbida e obscura
para seduzir os complicados
lúcida e equilibrada
para os analisados
comprar uma manta de lã
para as tardes frias das carências
escalar a montanha do tempo
leve como quem dança
e ousar – sempre - um vestido vermelho
no final de um poema.
Márcia Leite
sábado, 12 de abril de 2008
Um corpo quer outro corpo
uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Adélia Prado
Eu, como Adélia - minha inspiração -, me confudo o tempo todo. Quero o corpo, quero a alma, quero a essência. Moderníssima, espalho que o momento é que importa, quando na verdade o que quero, no fundo no fundo, é a eternidade.
Uma amiga, seios fartos em decotes enormes, vive me dizendo: pegue as coisas boas e deixe as neuras pra lá.
Mas como conviver com outra alma e corpo sem querer lavar as neuras? A síndrome de lavadeira de almas me persegue (como se a minha própria fosse imaculada..."Ah, só eu sei das esquinas por onde andei...Só eu sei. " Isso aí é uma música, não lembro de quem.).
Márcia Leite