segunda-feira, 28 de abril de 2008

Assim seja



[Te ofertei vinho, pães quentinhos
Toalhas bordadas, lençóis de linho
Reguei rosas, dálias, maçãs
Para enfeitar tuas manhãs.
Desci estrelas cadentes nas nossas noites
Aqueci teu coração com minhas mãos.
Mas tu - que teme o novo
Prefere o fundo poço dos antigos vícios
Erros repetidos.
Adeus, meu querido
Volto ao ouro das palavras
E à prata dos livros.]

Márcia Leite




Tenta-se o impossível nessa via de mão única. O encontro deseja-se eterno, mas não será. Revela-se a delicadeza, mostra-se a beleza, mas nem todos vestiram olhos de ver. Dispõe-se o vidro de perfume, com rótulo antigo, ao lado do cinzeiro de cristal azul, fake, bonito, como talvez fake seja o que se viu antes, apenas reflexo de um desejo.
Não é culpa dos olhos que não vêem a beleza do ovo de vidro alaranjado, do Senhor da Humildade em madeira, dos livros lidos, e dos não lidos, entre pequenas lascivas sereias de porcelana branca e bowls de carnival glass da década de 30, arrematados em leilões de outros tempos, outro homem, que certamente - sabem os olhos que vêem - foram orgulho de alguma mulher antiga, muitas décadas antes desta que ali está, no presente, tentando, inutilmente, dividir a delicadeza das imagens, parte de quem ela é, abrindo, escancarando, a porta para a entrada de um amor delicado como a madrepérola da grande concha que um dia foi despejada pelo mar entre algas e lixo na areia de alguma praia caribenha (ela gostava de pensar assim).

Na verdade não há culpa, nem erros, há apenas a diversidade. Diversidade de aprendizado, de escolhas, de intenções, de necessidades. Estar aqui e não estar, submeter-se a olhos desinteressados era tarefa auto-imposta. Na verdade desejava o amor e fingia não enxergar o engano. O olhar que desejava não percebia a beleza do sol entrando pela janela e iluminando uma única almofada jogada no canto do sofá, ainda amassada (moldura do quadril feminino que ali repousou) ou a pequena deusa hindu, com um cisne a seus pés, reverenciando o Amor na forma de um falo entre as mãos.

O falo...Ah, o olhar que se tenta seduzir com a beleza das pequenas coisas, das canecas de chá, das comidinhas, dos cálices cor de rosa transbordando cabernets, sauvignons e desejos entre velas e incensos é, e certamente sempre será, um olhar-falo, que só enxerga a fenda entre coxas femininas.

A delicadeza se ressente, se magoa. Mas não é ela mesma que insiste?

Ao mesmo tempo, ainda insistia, desesperadamente, despertar o coração dentro do outro peito. Mas aquele coração pulsa apenas ao piscar do olhar-falo. Não há futuro. Roga por coragem e caminhos novos.

Que assim seja até o próximo olhar que cruzar com o dela no solstício.

Márcia Leite

(imagem: Matisse)

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