domingo, 25 de maio de 2008

Batatas


Olhava as batatas como quem olha Deus e descascava-as como se fossem pêssegos, sempre cantarolando uma canção cujo nome não se lembrava. A única variação do ritual noturno era o avental azul, novinho. Aposentara o antigo, companheiro resistente, de tecido emborrachado com estampas de abacaxis, que existia desde o Dia das Mães, quando as crianças ainda eram adolescentes.
Sentia-se estranhamente feliz com o avental novo. Comprara-o naquela manhã com um sentimento misto de culpa e excitação, que provocou um ligeiro tremor nas mãos quando esperava sua vez na fila do caixa.
A mesa já posta, talheres brilhando, aguardando a família faminta. Foram chegando. Os dois filhos conversando e rindo de alguém que tinham encontrado no elevador, o marido tossindo aquela bronquite crônica, resmungando baixinho.
Ninguém lhe dirigia um olhar mais interessado, aliás, ninguém parecia ouvir o que falava nas suas tímidas tentativas de uma conversa à mesa.
Emudeceu com o tempo. Mantinha no rosto uma congelada expressão de satisfação num estranho sorriso. Mas aquilo era tudo que entendia de felicidade: um sorriso estranho enquanto olhava a família devorar em cinco minutos as batatas redondas, quase perfeitas, preparadas com precisão e paciência.
Após o jantar todos se levantavam, ainda sem lhe dirigir um olhar mais demorado, e partiam para seus universos particulares enquanto ela lavava a sujeira do mundo entre super-novas de detergente e galáxias inteiras de restos.
Até àquela noite... Naquela noite de ritmo lento um som novo invadiu a cozinha: uma voz masculina cantando um bolero!
As mãos pararam no ar esquecendo pela primeira vez, em décadas, as batatas. A voz invasora seduziu a mulher em mudez opcional e trouxe lembranças de tardes dançantes, quando ainda não usava aventais, e, sim, vestidos vaporosos, saltos altíssimos, cabelos em penteados elaborados ao modo dos filmes americanos da época; quando não tinha os sessenta e tantos anos marcados na pele, mas vinte e poucos deles brilhando no olhar.
Ouvindo a voz ela reviveu antigos sonhos, onde seu destino feminino parecia fadado aos amores e não àquelas noites embatatadas de ingratidão e indiferença. Despiu o avental e seguiu a voz hipnotizadora até o corredor do andar de baixo. Bateu à porta da voz e quando esta se abriu, ela, ainda em mudez, sorriu, e o cantor solitário - porque tratava-se de um viúvo, cuja única companhia eram os discos - sensível como só os amantes de um bom bolero sabem ser, acolheu-a imediatamente, sem perguntas, como só os homens sabem fazer.
A partir daquela noite, Alice não mais descascava as batatas com tanta precisão. Fazia-o agora como quem se obriga; a louça do jantar ficava sempre esquecida na pia até a manhã seguinte.
A mulher saia todas as noites, logo depois do jantar, mas ninguém nunca perguntou aonde ia.
Márcia Leite

O gavião e a Deusa



A bela ave sentia uma certa preguiça naquele sexto dia de inverno do ano de 2006, uma terça-feira chuvosa. Pensando bem, desde o dia do Solstício ele se sentia estranho. O céu mostrava-se indiferente, não ajudava em nada. Toda vez que abria os olhos (e as asas) o vento soprava mais forte, arrepiando seu dorso de uma forma inusitada. Pressentia algo novo no ar. Seu olho não costumava se enganar. Avistou a presa, luminosa, arredia, sorridente e simpática. Na testa dela brilhava uma luz azulada, no ponto exato do tal terceiro olho das histórias antigas que seu pai contava. Ele bem que tentou, mas não conseguiu equilibrar o vôo e a pegada, súbita e eficiente, que já lhe rendera medalha de ouro na competição para gaviões peso-ligeiro no ano de 1975. Quando jovem sabia muito bem como se livrar dessas sensações de perda de controle. Simplesmente voava por cima de todas. Agora, na maturidade, sentia-se como um adolescente que ainda sequer iniciara o curso de “Vôos certeiros para rapinas iniciantes”. Muitas presas se ofereciam (os campos, em todo mundo, andavam repletos de presas solitárias nesta última safra) aos olhos de gaviões, águias, falcões, corujas e até dos lobos. Mesmo alguns lobinhos recém-saídos da adolescência, que mal conseguiam correr em silêncio, andavam se dando bem nas temporadas de caça da última década. Mas ele se decidira por aquela presa. Em vão.
Enfim, o que sabemos é que o vôo do gavião foi diferente naquele dia. O sol que repentinamente coloriu o céu, em vez de clarear sua visão turvou-a. Ele não conseguiu alcançar a caça pretendida. Sem entender a dificuldade do momento, recolheu-se, irritado, pensando em marcar uma consulta com a águia, cuja sabedoria o fizera compreender muitos dos impedimentos que lhe aconteceram durante toda sua vida.
A presa em questão sorriu, misteriosa, assistindo a retirada do gavião, lembrando que estavam exatamente no período (de quatro em quatro passagens completas do zodíaco) quando a Deusa encarnava no terceiro sopro do vento à esquerda do *gavião-real, iniciando a peregrinação pelo país tropical para vistoriar os domínios do feminino que ainda seguiam a Tradição nestas latitudes calientes. Todas as súditas brasileiras da Deusa se tornavam invulneráveis aos ataques de qualquer gavião durante os doze dias de peregrinação da visitante do Olimpo ao Brasil. Era um pacto firmado, desde que o mundo é mundo, entre os deuses e seres alados de qualquer dimensão. Isto a isentava de culpa pelo acontecido. E a ele também. Mas aquele gavião parecia não conhecer essa história...

*Reza a Tradição que o gavião-real é o único representante legal de Hermes sobre os céus do Brasil. Foi indicado após reunião realizada no próprio Olimpo, na época da organização do mundo como nós o conhecemos até hoje. Sua candidatura suplantou, de longe, a pretensão do urubu-rei. Dizem que o urubu-rei retirou-se da reunião blasfemando contra a Deusa, incitando os outros urubus e corvos, parte de seu séqüito, a gritarem palavras de ordem, do tipo ‘abaixo a discriminação!’, contra o Comitê de Cargos, Representações e Sucessões. Por isso, de acordo com decreto da Deusa, apoiada pelo próprio Zeus, foi condenado, assim como todos de sua espécie, a comedor de carne passada do ponto.
Márcia Leite
Imagem: lh3.google.com/.../Armando%20alcázar.jpg

terça-feira, 13 de maio de 2008

Maio de Mãe


Mãe é como se fosse um país onde a gente se guarda pra crescer. Nos mostra a primeira estrela, o primeiro luar. Quando você cresce te fala dos seus sonhos de menina só pra desmistificar a santa; pra se aproximar. Te deixa ir quando chega a hora e te recebe de volta, toda vez. Te ensina musiquinhas de perder medo, a cor da rosa e o calor do sol. Te faz poeta antes mesmo de te ensinar a falar. Segura na tua mão quando tropeças mas também te dá as costas quando é tempo de levantar sozinho (mas de alguma maneira misteriosa, mesmo aí, não te perde de vista, porque nunca se sabe o tamanho da queda...). É delas a mão mais suave e o cheiro mais gostoso que a gente consegue lembrar. E para elas coloco aqui um trecho do Dindinha (porque mãe não é só gerar, é ‘maternar’) da Elisa Lucinda: “Com ela desfrutei de bonanças, compreendi e aceitei temporais. Com ela dei musica à minha voz, fôlego aos meus princípios, inícios aos meus finais. Pois, de joelhos estou por ela, voando estou com ela, grata que sou a ela...”


Márcia Leite

Imagem: Salvador Dali

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Filhos


É uma dor crescendo
Um aperto no útero
Um desconsolo no peito
Saudade dos meus meninos
Crianças
Que eu podia ninar

Crianças
As embalamos no colo
Secamos suas lágrimas
Sopramos o remédio
Direto na dor
São nossas as mãos que procuram
Quando tropeçam nas pedras

Crescidos choram escondidos
Rejeitam tua mão
Tuas palavras
São adultos
Não te reconhecem mais


Murcho o olhar sob a chuva
Embaçando a montanha
Que na rigidez de seu prumo
Me acolhe
Nesses dias de Inquisição
Não me condeno à fogueira
Fiz o melhor (que conhecia)

Retiro da farmácia o mercúrio
Que todas as feridas me ardam
Sangrem
Rasguem
Mas imploro cura para as deles.
Márcia Leite
(imagem: William Adolphe Bouguereau)