domingo, 25 de maio de 2008

O gavião e a Deusa



A bela ave sentia uma certa preguiça naquele sexto dia de inverno do ano de 2006, uma terça-feira chuvosa. Pensando bem, desde o dia do Solstício ele se sentia estranho. O céu mostrava-se indiferente, não ajudava em nada. Toda vez que abria os olhos (e as asas) o vento soprava mais forte, arrepiando seu dorso de uma forma inusitada. Pressentia algo novo no ar. Seu olho não costumava se enganar. Avistou a presa, luminosa, arredia, sorridente e simpática. Na testa dela brilhava uma luz azulada, no ponto exato do tal terceiro olho das histórias antigas que seu pai contava. Ele bem que tentou, mas não conseguiu equilibrar o vôo e a pegada, súbita e eficiente, que já lhe rendera medalha de ouro na competição para gaviões peso-ligeiro no ano de 1975. Quando jovem sabia muito bem como se livrar dessas sensações de perda de controle. Simplesmente voava por cima de todas. Agora, na maturidade, sentia-se como um adolescente que ainda sequer iniciara o curso de “Vôos certeiros para rapinas iniciantes”. Muitas presas se ofereciam (os campos, em todo mundo, andavam repletos de presas solitárias nesta última safra) aos olhos de gaviões, águias, falcões, corujas e até dos lobos. Mesmo alguns lobinhos recém-saídos da adolescência, que mal conseguiam correr em silêncio, andavam se dando bem nas temporadas de caça da última década. Mas ele se decidira por aquela presa. Em vão.
Enfim, o que sabemos é que o vôo do gavião foi diferente naquele dia. O sol que repentinamente coloriu o céu, em vez de clarear sua visão turvou-a. Ele não conseguiu alcançar a caça pretendida. Sem entender a dificuldade do momento, recolheu-se, irritado, pensando em marcar uma consulta com a águia, cuja sabedoria o fizera compreender muitos dos impedimentos que lhe aconteceram durante toda sua vida.
A presa em questão sorriu, misteriosa, assistindo a retirada do gavião, lembrando que estavam exatamente no período (de quatro em quatro passagens completas do zodíaco) quando a Deusa encarnava no terceiro sopro do vento à esquerda do *gavião-real, iniciando a peregrinação pelo país tropical para vistoriar os domínios do feminino que ainda seguiam a Tradição nestas latitudes calientes. Todas as súditas brasileiras da Deusa se tornavam invulneráveis aos ataques de qualquer gavião durante os doze dias de peregrinação da visitante do Olimpo ao Brasil. Era um pacto firmado, desde que o mundo é mundo, entre os deuses e seres alados de qualquer dimensão. Isto a isentava de culpa pelo acontecido. E a ele também. Mas aquele gavião parecia não conhecer essa história...

*Reza a Tradição que o gavião-real é o único representante legal de Hermes sobre os céus do Brasil. Foi indicado após reunião realizada no próprio Olimpo, na época da organização do mundo como nós o conhecemos até hoje. Sua candidatura suplantou, de longe, a pretensão do urubu-rei. Dizem que o urubu-rei retirou-se da reunião blasfemando contra a Deusa, incitando os outros urubus e corvos, parte de seu séqüito, a gritarem palavras de ordem, do tipo ‘abaixo a discriminação!’, contra o Comitê de Cargos, Representações e Sucessões. Por isso, de acordo com decreto da Deusa, apoiada pelo próprio Zeus, foi condenado, assim como todos de sua espécie, a comedor de carne passada do ponto.
Márcia Leite
Imagem: lh3.google.com/.../Armando%20alcázar.jpg

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