segunda-feira, 9 de março de 2009

Possibilidades amorosas


Sim, a voz dele era bonita, parecia familiar e soava como vento manso. A voz ecoava dentro dela igual saudade de um lugar que não se sabe bem onde é. Meu Deus, quem era aquele homem? O que ele queria? E o mais importante: o que ela queria?
Definidas as prioridades, ela decidiu que não queria se apaixonar, mas queria conhecê-lo. A sedução fazia parte da sua personalidade e do seu corpo. Ela não podia evitar. Tinha um corpo doce, com um mover sinuoso, suave, milenar, feminino. Os olhos eram dourados de tantos sonhos em palavras que brotavam direto do coração para os dedos. Escrevia compulsivamente. O tic-tic do teclado confundia-se com o tic-tac do seu coração. Coração, coração, coração...Era a senha para cada novo dia, cada amanhecer de cara para o sol nas montanhas, que vinha da janela escancarada do quarto azul preguiçoso, cheiroso e desarrumado. Roupas jogadas na poltrona, livros no chão, imagens de santos e anjos, quadros e fotos nas paredes, espelhos estrategicamente colocados de acordo com as regras do Feng Shui, bichinhos de cerâmica na jardineira da janela entre Marias-sem-vergonha brancas e vermelhas, poemas inacabados em papéis espalhados sobre a mesa amarela, que ela mesma pintara. Sua cama era dividida ao meio, numa metade o seu corpo, na outra, palavras, suas e de outros, em livros e papéis, e um telefone verde que tocava quando não devia e silenciava quando deveria falar. Palavras, coração, sonhos, disponibilidade, insatisfação, palavras, coração...E o homem não saia de sua cabeça, o que fazer com ele? Primeiro era preciso que se vissem, e isso deveria acontecer em um lugar público, durante o dia, de preferência. Que roupa ela deveria usar? Abriu a porta do armário e deu uma olhada rápida nas roupas penduradas, e pensou que já não usava a maioria delas e decidiu que era hora do ritual de trocas, que consistia em ligar para as amigas e reuni-las no quarto, com todas as peças que ela não queria jogadas na cama, enquanto as outras espalhavam as delas, para a troca, pelo quarto. Elas faziam esse ritual há muitos anos, e sempre se divertiam muito com aquilo. Os rituais eram sempre precedidos de comidinhas e vinho, todas em volta da mesa da sala, rindo e contando as últimas novidades. Eram 3 mulheres que se conheciam há muitos anos, desde quando os filhos ainda eram pequenos e estudavam na mesma escola.
Por coincidência, hoje estavam, as três, separadas dos maridos e seus filhos já na universidade.
Elas eram muito parecidas fisicamente, e inúmeras vezes já tinham lhes perguntado se eram irmãs.

Íris, a mais ‘ saidinha’ de todas, sempre respondia que sim, ao quê Luísa, tímida, mas muito espirituosa, concordava com a cabeça e um sorriso divertido. Cléa, a mais séria delas, olhava para a pessoa como que pedindo desculpas, fulminava Íris com olhar de reprimenda, mas nunca desmentia. Quando o assunto começava a se estender muito, Íris sempre dava um jeito de dizer: - Somos irmãs no astral!
E sorria de um jeito cativante, meio infantil, meio irônico, que as outras conheciam muito bem.
Íris ligou imediatamente para Cléa, antes que esquecesse, pois vivia ‘esquecendo tudo’, o que era motivo de risos e piadinhas das outras sobre ‘a necessidade’ de tomar vitamina E com mais freqüência, ‘afinal você já está na menopausa, não está não?’, marcando o ritual para dois dias depois, e pediu que esta avisasse Luísa. Isto feito, voltou seus pensamentos para o homem. Ai, aquele homem!!

Os dias passaram voando, como todos nos últimos anos ( parece que a ansiedade hoje não é a mesma de antigamente, você nem tem tempo suficiente para ficar com cara de ansiosa: aquele olhar meio parado, psicótico, se descabelando e comendo todas as unhas). Na tarde combinada, a primeira a chegar foi Cléa, arrastando duas enormes sacolas pretas cheias de ‘material de ritual’ e uma pequena bandeja plástica com biscoitinhos de gergelim. Íris percebeu, assim que abriu a porta, que Cléa usava uma blusa que tinha sido de Luísa e, honra seja feita, ficava muito melhor nela. Aquela cor realçava seu tipo germânico: alta, corpo volumoso, pele rosada, busto farto e olhos azuis. A blusa era violeta (ou lavanda?). Íris sempre associava lavanda (até o cheiro) à cor violeta. Tudo a ver com Cléa, até no que se referia ao Raio Cósmico preferido da amiga, o da transmutação.
Íris comentou: - Essa blusa fica mesmo linda em você. É a sua cara! A cor deixa seus peitos róseos, ‘ruborizados’, rodriguianos.
Cléa riu enquanto a beijava e comentou, com sua fala pausada: - Ah, então é isso! Todos os homens que passavam, me olhavam de um jeito meio acanhado, como se pegos em flagrante delito!
Íris pensou se deveria pedir a blusa emprestada à Cléa para seu encontro (ai, aquele homem!), mas aí lembrou que ficaria meio larga no decote, e suspirou resignada por seus peitos não tão fartos quanto os da amiga. Olhou para baixo instintivamente e considerou, pela primeira vez, a possibilidade de um implante de silicone. Será que se ela engordasse um pouco eles não ficariam mais cheios? Não, engordar era impensável! Deus me livre! O melhor mesmo era juntar uma grana e fazer a cirurgia, ou então continuar para sempre com os peitos assim ( e caminhando para pior...), nem grandes nem pequenos, meio flácidos, apesar de branquinhos com delicados bicos cor de rosa (pelo menos isso, pensou já mais aliviada!). Tudo isso passou por sua cabeça em menos de 10 segundos, enquanto Cléa ia colocando as sacolas e a bandeja em cima da mesa da sala.

- E Lu, não chegou ainda?
Íris ouviu Cléa perguntar, o que a tirou do conflito engordar/silicone/deixar como está, e respondeu:
- Não. Acho que vai demorar, ela foi primeiro ao dentista.
- Então vai mesmo. E aí, novidades do cara da internet?
- Ah, minha filha! Agora quer que a gente se encontre logo. Me ligou ontem à noite e resolveu que já é tempo, estamos nesse papo virtual há mais de dois meses, está me pressionando direto. Disse que virá no final do mês passar uns dias aqui no Rio, visitar uns amigos. E se ele não gostar da minha cara quando me ver frente à frente? A foto que mandei pra ele foi aquela que tirei quando passamos o Carnaval em Búzios na casa da irmã da Lu, lembra? Tem quase 2 anos! Ah, mas não estou tão diferente assim, estou?
- Não, Íris. Só algumas rugas a mais em volta da boca e dos olhos, quando você ri. Naquela época você ainda não estava com essa cara de menopausa!
- E não estou ainda, pra seu governo, tá! Que cara que eu estou, hein? Que coisa!
- Estou brincando! disse Cléa, rindo.
- Isso não é assunto prá brincar ! Não está vendo como estou ansiosa? Ah, tá certo, não dá pra ver, mas você sabe muito bem como estou morrendo de medo. E se ele não gostar de mim? Eu estou feliz, está tudo tão legal do jeito que está. Ele precisa me conhecer melhor por dentro, ele sempre disse que isso era o mais importante para ele.
- E você acha que homem algum nesse mundo quer conhecer a mulher só por dentro? Bem, isso também, com certeza! Aliás, você até que tem razão, é o que eles mais querem, riu Cléa, mas primeiro eles precisam ver como é por fora pra ver se vai valer a pena conhecer o ‘por dentro’!
- Hoje você tá que tá, hein? Devem ser esses peitos lavanda nessa blusa violeta! Não é esse por dentro, sua cínica!
- Ah, querida, conforme-se, é sempre esse ‘por dentro’ sim!

Entre os comentários e os risinhos, Íris foi ajeitando a mesa e os copos de vinho. Como Cléa folheava uma revista, aproveitou para ligar o computador e verificar as presenças no msn. Lá estava ele, no meio da tarde, coisa atípica. Nunca se falavam à tarde, era a pior hora do dia no escritório, dizia ele. Ela, offline, mas atenta, foi ajeitando as coisas para a reunião, muda, já que Cléa continuava lendo a revista. A campainha toca e a porta é aberta para a entrada triunfal de uma Luísa de rosto vermelho, algum brilho de suor na testa e uma enorme caixa de torta equilibrada no braço direito. – Meninas, vocês nem imaginam o que me aconteceu! Ah, trouxe uma torta de chocolate com morango...Não resisti! Mas olha, fiquei pasma hoje no consultório do Horácio! Adivinhem quem estava na sala de espera com uma cara sofrida?
As duas amigas se entreolharam sem tentativa de adivinhação e Luisa foi logo contando: - A vagabunda da Tânia! A cara ridícula de sempre, um vestido horroroso estampado preto, azul, vermelho e com uns negócios verdes por cima de tudo; precisavam ver a figura!
Ao que Íris respondeu:
- Gente, ainda não consigo olhar para a cara dela sem vontade de dar um tapa! E pensar que durante anos eu ajudei a cretina a garantir seu lugar na escola. Insegura do jeito que ela era, muda durante as reuniões na sala dos professores. Ninguém ia muito com a cara dela, até me avisaram que não confiavam muito naquele jeito dela. Mas eu, idiota, fiquei com pena e deu no que deu. Outro dia o Flavinho me contou que ela e o Maurício estão numa merda daquelas! Quero nem saber. Também não vou desejar o mal, né Cléa? Fazer karma, Deus me livre! Mas confesso que não estou nem aí para a situação dos dois. A cretina com aquela cara de coitada, aproveitou da minha inocência e roubou meu marido. Hoje em dia, até acho que deveria agradecer, mas...
- Querida, ela se aproveitou da sua ‘inocência’ e da safadeza do Maurício, né? Só você é que não via que ele sempre foi um galinha. Não queria era ver. Foi a melhor coisa que aconteceu, você se livrar daquele estorvo.
- Também não exagera... Ele tinha coisas boas, também.
- Vamos deixar esse fantasma no limbo e falemos do moço da internet.
- Pois é...Ele é muito articulado, já passou por dois casamentos, dois filhos crescidos e casados. Não se utiliza de vulgaridades, como alguns desses caras de bate-papo. É psiquiatra, tem um consultório em Vila Madalena e trabalha no Hospital das Clínicas também. E tem uma casa em Campos de Jordão...
Cléa parou de beliscar o bolo, arregalou os olhos e perguntou:
- Como é o nome dele?
- Paulo Pedrosa de Moraes, respondeu Íris.
Cléa pousou o pratinho na mesa, arregalou ainda mais os olhos e falou, quase gritando:
- Pelo amor de Deus, é o ex-marido da Solange!
E riu, um riso meio histérico, segurando os peitos no decote, até ficar vermelha como um camarão cozido.
- Que Solange? Aquela que estudou com você na pós em São Paulo e tentou o suicídio depois que o marido foi embora? Meu Deus, não é possível...
- Ela mesma! Não dá pra acreditar. Com tantos milhares de homens na internet você foi logo conhecer o Paulo da Solange...Meu Deus...
- Nem eu estou acreditando. O que será isso? Agora estou muito preocupada.
- Olha, o que posso dizer, é que tome cuidado. O que ele fez com a Solange foi praticamente igual ao que o Woody fez com a Mia Farrow, lembra? O cara é um canalha!! Muito bonito, realmente, inteligente e bem sucedido, mas um canalha. Ele e Solange se conheceram justamente nessa época que a conheci também. O namoro foi rápido, coisa de meses, se casaram, tiveram os dois filhos e tudo parecia muito bem. Solange era apaixonadíssima por ele, a vida sexual dos dois era perfeita, mesmo após vinte anos de casados (é o que ela dizia, sempre). Só que de repente ela descobriu que ele dava carona para a sobrinha dela quase todos os dias. Não achou nada demais, uando soube pela irmã. Até que um dia, passeando pela Paulista viu a sobrinha entrar no consultório dele. Já era final de tarde, horário em que ele, normalmente, encerrava as consultas. Alguma coisa fez com que ela se escondesse por trás das pilastras da garagem e ficar aguardando que ele saísse. Esperou quase uma hora inteira e quando, finalmente, viu o carro subindo a ladeira de saída viu a sobrinha pendurada no pescoço do seu marido, beijando o rosto dele enquanto ele ria. Antes de chegar à rua viu o marido virar-se para a moça e beijá-la na boca. Ela quase morreu ali mesmo. Disse que não sabe como conseguiu pegar seu carro e dirigir até a casa. Quando ele chegou ela o confrontou com o que tinha visto. Não adiantava mentir, disse ela. Ele simplesmente confirmou tudo, disse que queria se separar, mas que ela não temesse problemas financeiros, pois ficaria muito bem com a casa nos Jardins e que nada faltaria aos meninos. Mas que realmente, não sentia mais nada por ela, há muito tempo. Ela ainda tentou falar que aquilo era como um incesto, sua sobrinha tinha dezenove anos apenas. Crescera com os filhos deles, como se fosse uma outra filha. Ao que ele respondeu: - Mas não é!
O resto você sabe, que contei à época. A irmã expulsou a filha de casa, Solange tentou o suicídio e só se salvou porque um dos filhos chegou mais cedo da faculdade. Hoje em dia ela, graças a Deus, está muito bem casada novamente com um professor de um dos meninos que conheceu no baile de formatura do rapaz.
Lu, que ficara calada o tempo todo com os olhos correndo de uma amiga para outra como numa partida de tênis, abriu a boca pela primeira vez e disse bem alto: - Puta que pariu!!!
Cléa deu uma gargalhada e Íris,quase rindo, também falou:
- Não é pra rir, não, gente! Estou quase morrendo aqui. Que merda! Eu já estava me imaginando
casada com esse homem. Meu Deus...Essa sobrinha então deve ser o segundo casamento que ele
contou que durou só três anos e acabou quando ele descobriu que ela o traia com um estudante de direito que morava no mesmo prédio que eles. Ele fala muito mal dessa mulher, mas nunca falou da primeira...Não quero saber desse cara mais, não! De canalha já basta o Maurício na minha vida, eu hein! A sobrinha da mulher, criada com os filhos dele, uma menina de dezenove anos. Ele me disse que tem 59 anos! Loucura isso! Deus me livre!
Cléa olhou para a amiga e se perguntou se tinha feito bem em contar essa história toda. Íris estava tão empolgada com esse romance virtual... Íris parecendo adivinhar os pensamento da amiga, falou:
- Não se preocupe, Cléa. Eu acredito que nada é por acaso mesmo. Imagina se eu me engato toda com esse homem e daqui a algum tempo descubro que ele é um papa-anjo incestuoso. Eu também tenho sobrinhas, né? A tal sobrinha de santa não tem nada, mas eu não sei das carências paternas dela... Mas o cara, a sobrinha da mulher, que ele viu nascer? Pelo amor de Deus, pelo amor de Deus!

Íris estava convicta que a providência divina tinha agido para livrá-la de outra grande desilusão. Meio atordoada abriu a porta da sala para levar a caixa da torta para a lixeira e deu de cara com o vizinho recém mudado abrindo a porta de casa; ele olhou para Íris, ela olhou para ele e naqueles três segundos percebeu que ele tinha quase 1,90m de altura, pele claríssima, cabelos castanhos bem curtos, olhos sorridentes, uns vincos acentuados ao redor da boca,que em vez de envelhecê-lo dava-lhe um ar de seriedade, masculinidade, e – que delícia! - um pescoço lindo (Íris adorava pescoços masculinos!). Já soubera, pelo porteiro, que ele era jornalista, divorciado e sem filhos. Ela sorriu de volta para o vizinho e, antes de fechar a porta, seu olhar respondeu à sedução daqueles olhos sorridentes com uma aquiescência discreta. Só depois disso é que fechou a porta, com cuidado e, voltando-se para as amigas, quase gritou, eufórica: - Ai, meninas, Deus é mesmo muito bom!
As outras duas se entreolharam por sobre as taças de vinho, intrigadas, sem entender nada.

Márcia Leite

quinta-feira, 5 de março de 2009


O Menino
(para Maiam)

O menino do coração de ouro apareceu. Emudeci, com o dedo em riste, e perdi a contagem de estrelas, exatamente na terceira constelação. O vento veio junto, soprando música nas varetas de bambu. A roseira estremeceu e o limoeiro do meu pai deixou cair duas folhas, ainda verdes. Meu coração deu voltas no estômago e a boca prendeu a surpresa com gosto de hóstia mordida.

Era a vontade e a impossibilidade. O pecado e o susto. As visíveis diferenças e as semelhanças gritantes. Conflito e paz. Luz e sombra, sombra e luz. Sim e não. Não. Sim.

O novo mantra, que intuí no século passado, invadiu meus sentidos como um hino, um balançar de folhas de tamareiras bíblicas, lamentos de Muro, sumo dos figos de Jerusalém escorrendo pelos cantos da alma. Não entendi um som. Não quis entender (preferi sentir).

Desci correndo as escadas até meu quarto, baixando os olhos na tentativa de passar despercebida pela página amarelada do Alcorão entre os verdes, vermelhos, marrons, maçãs, pêras e papel rendado na colagem em acrílico da tela na parede da sala. Tranquei a porta com duas voltas da chave, acendi a luz do abajur que ilumina minhas noites e a imagem de Miguel Arcanjo que as protege. Descalcei as sandálias e me joguei na cama, escondendo os olhos com as mãos para não ouvir mais nada.
Márcia Leite