quarta-feira, 10 de junho de 2009

O pintor


pinta dores livres de sombras

(o mar por trás da sombra, a luz por trás do mar)

desfechos e começos (a cor, o ar )

- e a lua ilumina seus dedos

cinzela seu nome nos meus cantos

descansa seus passos nos meus vãos

desenha meu nome no seu beijo

(pedras veias véus ponteiros camelos sonetos )

mostra Frida e seu homem na testa

(eu olho e penso: é o que me resta)

outras Fridas (muitas mais)

um menino (Curupira, que engana quando anda)

e parte

- caminhando nossas outras vidas

(o trânsito para e a rosa foge)

chego

- pontes túneis sol água desapego

deito

abro o livro

me encanto

(aceito o feitiço:tatuar suas mãos

- sem traços -no meu corpo)

sorrio (colho um hibisco)

coloco uma nova rosa no jarro

e durmo.


Márcia Leite, Versos Descarados

domingo, 7 de junho de 2009



Antes de mim era névoa, o incompleto estar, apenas memória (pouca).
Antes de mim era rio (dócil) seguindo um curso não escolhido, apenas
um rio que seguia (e sequer sabia do mar).
Antes de mim era brisa, sopro quente frio morno, brisa jovem, filha bastarda de Vayu.
Bem antes de mim era estrela, brilho tardio no céu iluminando o momento (sem perceber que não existia), meia palavra, lenta trôpega ingênua, letras afoitas agrupadas.
Antes de mim era também universo (só até onde a vista podia alcançar), verso pobre sem música, nota monótona, monocromática.
Antes de mim era sorte, horóscopos quiromantes cartomantes.
Antes de mim era livre barulhenta crédula gargalhadas.
Hoje sou silêncio, tarot i ching runas, insônia estudos solidão.
A única conquista é um abridor de auroras, que só funciona quando a noite é cúmplice
(o que raramente acontece).
Hoje sou refém das noites de sudoeste, das palavras já experimentadas e da estrada que escolho (a cada nova madrugada).


Márcia Leite

in Versos Descarados

ardo-me



ardo-me por um tango de Piazolla
um soneto de Neruda
um poema de Lorca
encolho-me sob os personagens
de Guimarães
exibo-me às palavras de Luiz
ser não é viver o desejo
é ser o próprio desejo
respirá-lo
expirá-lo
senti-lo no baixo ventre
destilando nas veias
para bebê-lo ardente
direto da boca da alma.


Márcia Leite