quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Lucy, a rosa da vizinhança


Escrevia quatro cartas por mês. Desenhava seus próprios vestidos e costurava-os na máquina da mãe morta. Saia às ruas balançando os cabelos louros presos em um ‘rabo de cavalo’, como os usava desde criança. As cartas eram guardadas numa gaveta da cômoda, logo abaixo da das calcinhas (que era perfumada com galhos secos de alfazema). Sexta-feira era dia de ir ao Museu. Olhava e olhava o acervo, cada detalhe de cada quadro já decorara, mas sempre conseguia descobrir algum outro e anotava a nova percepção numa caderneta de capa dura (já a quarta ou a quinta delas). Sempre sozinha, caminhava pela Cinelândia, sentava no Amarelinho e pedia, invariavelmente, um cappucino e uma água.

Voltava para casa no início da noite, quando a luz ainda só acinzentava. Gostava de contar para as vizinhas as novidades das sextas-feiras e dizia, agitando as pequenas mãos ‘Vocês precisavam ver, precisavam, mesmo, ver! O homem sentou a meu lado no Amarelinho e não mais tirou os olhos de mim. Fingi que não percebi, e até que era um bonitão de não se jogar fora, mas imagina se trairia meu Diguinho! Eu não!’, as vizinhas se entreolhavam e apenas sorriam ouvindo-a falar. Entrava na casa, cobria a gaiola do papagaio, não sem antes desejar-lhe uma boa noite ao que ele correspondia com sua voz de criança.

Preparava-se para a noite tomando um demorado banho na banheira retangular de azulejos azuis e cantava Beatles enquanto mergulhava o corpo naquela água morna, cheirando a sais de banho da Avon. Enrolava-se no roupão atoalhado de fundo rosa claro com estampa de pequenos buquês de violetas, dirigia-se à cozinha para esquentar a água para o chá noturno, de camomila, o mesmo com que enxaguava os cabelos claros uma vez por semana. Ligava a televisão para ouvir o noticiário antes da novela. Com o chá na mão e um prato de bolachas, sentava-se no sofá marrom, de couro sintético, enrolava os pés sobre o corpo, assistia o capítulo em silêncio. Desligava a televisão logo após o final do capitulo, fechava as cortinas e deitava na cama cheirosa (suas roupas de cama eram sempre enxaguadas com essência de alecrim na última aguada).

Era uma moça bonita, delicada, sensível e detalhista. Aparentava uns 30 e poucos anos, mas as vizinhas sabiam que já passara dos 40. Às vezes, enquanto o chá não fazia efeito, abria a gaveta da cômoda, pegava uma das cartas e a lia em voz alta. Eram cartas de amor e saudade, repetitivas. Todas endereçadas a 'Meu amado Diguinho' e terminando com ‘da sempre sua Lucy’.
As vizinhas, no início, até que tentaram entrar em contato com o ex-noivo da moça, mas o único endereço que sabiam era do antigo hospital e lá desconheciam o paradeiro do doutor Rodrigo. Uma chefe de andar lembrava bem do ‘doutor Rodrigo Munhoz’ e sabia do caso da noiva que enlouquecera, mas não tivera mais contato com ele. Parece que ele pedira demissão do hospital para fazer um mestrado fora do país; na França, ouvira falar.

Lucy era filha única de filha única e professora de Artes numa escola municipal. O noivo, obstetra, abandonou-a na véspera do casamento para casar pouco depois com uma das enfermeiras do hospital. Ela sofreu seu primeiro surto, violento, quebrando tudo do quarto aos gritos, que eram ouvidos por toda rua. A partir dai intercalava esses surtos com períodos de total apatia quando não comia nem falava. Foi internada pela mãe numa casa de saúde onde ficou oito meses e, considerada inapta para o serviço público, foi aposentada por insanidade mental aos 28 anos. A mãe, já muito doente, faleceu logo em seguida à alta de Lucy, o que provocou um novo surto, dessa vez totalmente silencioso e que durou duas semanas. As vizinhas cuidaram dela e aos poucos ela voltou a conversar e se alimentar. Notaram que agia como se Diguinho e ela ainda estivessem por se casar e ele estivesse viajando para mais um dos congressos de medicina que costumava ir.

Há quinze anos não surtava, mas se alguma delas tentava lembrar que Diguinho não voltaria, até já se casara com outra!, ela tapava os ouvidos e começava a repetir frases curtas, desconexas. As vizinhas desistiram com o tempo e, alimentando sua mansa loucura, a presenteavam todo mês com uma nova peça para o enxoval guardado num baú laqueado de vermelho. Lucy era a rosa da vizinhança e por isso regavam-na todos os dias com carinho em forma de pratinhos de comida e lanchinhos quentes.

Márcia Leite

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

La cosechadora de palabras


Nadie sabe quien soy más allá de los ojos.

Hay una extraña melancolia detrás de la lucidez

que me escolta en la caberna abarrotada de palabras.

En esos momentos, la soledade que me precede

se agiganta, turbando la visión, dificultando el trabajo.

El útero de piedra donde viven las palabras todavía no recogidas

es tan frío como el musgo por el que camino con los pies descalzos.

Está prohibido el uso de cualquier protección contra las cosechadoras de palabras.

Los pies, las manos, todo el cuerpo deben estar desnudos.

Cualquier otro contato mataría las palabras antes de la cosecha

despertando la ira de las ninfas que las generaran

y la cosechadora de palabra sería castigada al exilio eterno

en la isla de la Duda, donde nada se completa.


Márcia Leite, em Versos Descarados