quarta-feira, 16 de junho de 2010

Presa e Predador (divagações manuelinas)


Entender o que esconde a transparência do ventre de Daisy Margarida sempre foi objeto de longas conjeturas nas minhas noites de contemplar lagartixas, insetos e o fascinante balé de vida e morte entre presa e predador.

O mosquito, lá em cima, dissimulado, descansa dos golpes da revista dobrada que empunho na mão direita. Está tão ocupado em disfarçar o próximo ataque que não percebe Daisy Margarida , mais dissimulada ainda que ele, pronta para o bote mortal que excluirá o pequeno vampinseto da face da Terra.

Esqueço a barriga da lagartixa e jogo mais uma para a mulher, eu mesma, deitada: Mosquito tem alma?

Aprendi e acredito que tudo que nasce (voa, anda, come, dorme, vive, morre) tem alma. Sou crédula o suficiente para acreditar até em alma das pedras (mas aí é alma diferente, oriental, toda zen, uma espécie de energia cumulativa, como um armário onde ficam guardadas as energias-pensamentos de quem nela tropeçou ou descansou, ou qualquer outro tipo de contato. Essas coisas de japoneses...)

Sem devaneios, insisto, responda! Mosquito tem ou não tem alma? Existirá um céu e inferno, ou um karma especial para insetos? Se chupou sangue de bebê, por exemplo, voltará mais umas 5000 vezes como mosquito até poder virar um grilo, uma borboleta bonita, ou até mesmo um besouro daqueles grandes que brilham azulados sob o sol? Ou chupar sangue de quem ainda não aprendeu a se defender é pecado tão grave que irá direto viver a solitária eternidade do inferno? Será que inferno de mosquito é barriga de lagartixa? Esta última hipótese me parece bastante crível. Porque, vamos e venhamos, barriga de lagartixa é mesmo um horror. Transparente nebulosa gosmenta, galáxia de líquidos gástricos lagartixenses. Uma fração de segundo dentro do sistema digestivo de lagartixas, mesmo sendo o de Daisy Margarida, aclamada musa, deve ser pior que a eternidade num inferno mais comum.

Enquanto continuo divagando sobre crime e castigo no mundo dos insetos, Daisy M dança o grand finale e o mosquito desaparece dentro de sua boca. Fico por alguns segundos ainda deitada no espanto de sempre, depois levanto para procurar o cd da Enya tentando embarcar numa energia menos surreal, para não sonhar com universos dantescos dentro de barrigas de lagartixas e muito menos com a certeza que estamos todos na mesma cadeia de sobrevivência. Presa e predador. Sinceramente? Não sei o que é pior.


Márcia Leite, Revista Literária Plural, Oficina Editores, RJ/2004
foto: google images