quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Presa e Predador (II - parte)


 “Nem os gritos dos manicômios são tão sombrios quanto  o rastro dos teus passos. “
Márcia Leite

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Na pele da noite (lunarium)



vesti a pele da noite
e sem que soubesses
era eu a lua na janela
que  te inspirava
palavras de amor às outras

que resgatava tua alma
entorpecida na borda dos lagos
congelados nos copos
da solidão dos desencontros
do desespero dos poemas brancos

lua das vontades esparramadas
sobre o vazio das ruas
acariciando teus passos
tua tristeza infinita
teus olhos de abandono

hoje, quando não ousamos mais segredos
- nem içamos velas de sonhos
posso te dizer:
era  eu
aquela lua de outono.

Márcia Leite

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Escurecendo








não estranhes a poesia da manhã
quando o dia se oferece nebuloso
as eclipses predominam
matando qualquer vontade de ensolarar.



Márcia Leite
Imagem: Óleo sobre tela, Pedro Ignácio Leite

sábado, 17 de dezembro de 2011

A lua atravessada





a lua oblíqua 
descansa
sobre a pedra do Hierofante

atravessada nos sonhos de Afrodite
ela repousa sua fase obscura
entre espumas, segredos e amantes.

Márcia Leite

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Sorte




"Acredito nas runas, respeito pitonisas, detesto vampiros."
Marcia L


Cada louco com sua camisa
Cada vida com sua sorte
Cada pouco com seu resto
Cada amor com sua morte.

Márcia Leite 
Imagem: John Collier, Pitonisa de Delfos

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Como resistir ao olhar de Clarice?





como desistir se o universo que carrego
estrela reflexos do mistério?

como prosseguir sem planetas
ou cavernas a explorar?

como viver sem leitos de rios
sem eclipse lunar?

Márcia Leite
Mal subi dei de cara com o piso do quarto todo marcado de patas. Érica desapareceu, antes mesmo da chuva, esquecendo a poeira da montanha no chão do terraço. Tsuki, a cadela, não quer saber se o piso é branco, se estou cansada ou se tenho uma imagem martelando a cabeça, pronta para uma primeira abordagem. Não quer saber de nada além de se refrescar sob as gotas. Fica num entra e sai irritante (que num outro momento, sem chuva, poderia ser lúdico e até engraçado) enlameando todo o piso. Ai, assim perco toda a poesia!

Márcia Leite
Cada gotícula de suor expulsa parecia lágrima de solidão. O corpo ardia, na noite dos arrependidos.

Márcia Leite

Inquietude

isto ou aquilo, poderia dizer
ele ou aquele, poderiam ser
mas não vejo nome
imagem (ou desejo)
nada de concreto
somente uma lembrança
(quase apagada)
nesta inquietude que atravesso
e me consome.

Márcia Leite

sábado, 10 de dezembro de 2011

Pardais



O sol beija o quarto, ilumina as paredes, realçando as cores nos detalhes onde invejei Frida. Sábado de preguiça. Uma vontade louca de soltar o corpo mundo afora num ‘¿Quien me va a entregar sus emociones? ¿Quien me va a pedir que nunca le abandone?’, e rindo do inusitado, da lembrança, da vontade de liberdade no absolutamente simples, no descomplicado. Alegria levada ao extremo de assumir, mesmo que só por alguns dias, uma cortina exagerada, vermelha, florida. Delícia de sábado, bem-te-vi gritando, barulhinho de pardais bicando, desfiando o toldo para construir ninhos (ninhos simples, ninhos de pardais). Cheiro de café invadindo a casa e - que leveza na alma! - nenhuma outra necessidade além de vivê-lo.

Márcia Leite

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

À magia dos encontros

Quer gostes ou não, escrevo poesia. Escrever poesia não é aglomerar palavras, é destilar os sumos do olhar e aspergi-los, com cuidado, sobre o papel. Escrever poesia não é encenar passos cronometrados sobre tablados, é viver a lâmina, o besouro, o pássaro, a árvore, o sol, o sangue, o espanto, o farol, o outro, o fundo (da caverna, do poço).

Márcia Leite

sexta-feira, 25 de novembro de 2011


alguma coisa não bate bem agora
e não é apenas o batimento cardíaco
vem de cima
alguma coisa não bate no ritmo esperado
e não é o som da noite

não sei que vento trouxe este sussurro de mudança
este movimento de recuo - menos palavras
mas devo agradecer(de qualquer jeito tudo foi tão mágico...)
e ficar assim: agradecida

sei que as corujas perderam a rota
e que as estrelas já não explodem como se nos acompanhando
não vejo seus rodopios multicores
não vejo cor alguma.

Márcia Leite
Imagem: Galatéa de las esferas, Salvador Dali

A dor



a dor
que te tira as palavras
porque qualquer uma
doeria ainda mais
talvez não as palavras
mas o som da tua própria voz

para estas dores
só o silencio dos olhos fixos na parede
o vazio no peito e na garganta
ela entre os seios
te revirando noventa graus na cama
o corpo encolhido em posição fetal

é impossível deitar a cabeça no travesseiro no momento de viver dor

depois da noite
ir às palavras na manhã
e lembrar que é apenas mais uma dor.

Márcia Leite
Imagem: Picasso

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

cebolas




me pergunto se as cebolas que chorei
debruçada sobre a pia
contam pontos para a ascensão
e se terei direito a pontos extras
por sacrifício praticado em favor de outros

descascar cebolas - antes do truque das facas molhadas
torturava as minhas meninas dos olhos
abnegada, eu me dedicava
ao picar dos círculos roxos ou brancos
que dariam o tempero exato aos pratos

se alguém percebia o suplício
eu nunca soube
sei das lágrimas enxugadas
na palma da mão esquerda
e que ardiam na alma
se as notícias do dia tivessem gosto acre
ou das cócegas no nariz caso as lembranças
fossem cheiro de maçã assada na panela

às vezes ousava jantares quase sonetos
menu cuidadosamente elaborado
mas nunca consegui a plenitude desejada
na verdade
tudo era apenas
parte de uma grande cena
onde a fala principal era do vinho que acariciava
o céu da boca
contracenando com um caso engaçado
entre um prato e outro

a toalha combinando com os cálices
guardanapos repousados com arte
flores e velas boiando no bowl azul
no centro da mesa

entre uma passada e outra
da sala à pequena cozinha
eu cantarolava na expectativa de uma boa prosa
que quase nunca acontecia
mas me contentava em observar
os olhos dos convidados
suas reações, seus gestos
- que me renderam muitos versos
e só agora entendo que foi por isso.

Márcia Leite, em Aos Pés da Montanha, Oficina Editores, 2009

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Liturgia da paz interior

Saudade do que se escolhe deixar ir não avisa quando vai chegar. Por isso ela manteve o grande vaso de capim santo bem regado, para que não lhe faltasse o chá de secar lágrimas. Só se escolhe deixar ir aquilo que já não se precisa mais. Precisar de alguma coisa traz uma certa dependência àquela coisa que você acha que está precisando; no final,quando a razão cutuca a emoção, aquela precisão revela-se um hábito, quase um vício. Aí você bota na balança o que há de bom e o que é ruim e se o prato arriar de tal modo que é impossível negar que o lado ruim é muito mais pesado que o bom, tem que tomar coragem e indicar a saída.
Saudade do que se escolhe deixar ir, também é conhecida como saudade de fechar porta. Você até acha, na hora fecha-porta, que a saudade não virá. Mas a saudade chega assim mesmo, porque hábitos se entranham em você e teimam em não te deixar. Tem gente que passa anos lutando contra, tomando banhos de descarrego pra tentar se livrar dos fantasmas e, num nível mais patológico, até tendo sonhos recorrentes com antigos hábitos.
A saudade chegou e chegou juntinho com a escuridão. O que era bom, porque saudade que passa tem que ser noturna, as diurnas são mais difíceis de curar. A noite é a melhor hora de viver saudade, só assim, depois de muito sentir é que você consegue se livrar dela. Não adianta fingir que ela não está lá; ela está ,e se você não a deixar entrar, ela vai te atormentar até você admitir que a sentiu, que ela existe, que é real.
Iniciou o ritual de boas vindas - existem dos mais diversos tipos, porque cada saudade tem uma necessidade diferente. Preparou o chá, sentou-se bem aprumada na cama, costas retas na cabeceira acolchoada que ela mesma fizera, e pegou o livro do Rubem Alves (agradecendo a lembrança do autor nas palavras do amigo que não via há tempos e que encontrara na noite anterior). Bebericando o liquido quente, foi logo chorando, comovida, nas primeiras linhas do bendito. Leu duas páginas e as costas começaram a incomodar. O problema era o peso das lembranças que atropelavam o ritual tão bem planejado. As palavras do escritor embaralharam sob seu olhar que se transformou num olhar seco de um outro sentimento, um misto de raiva e arrependimento dos erros que ela própria cometera na teimosia de apostar nas diferenças. Levantou-se e procurou o bálsamo, mas quem iria aplicá-lo em suas costas doloridas? A dor passou a ser o foco e a saudade foi deixando de existir, mais rápido do que ela esperara e morreu, ali mesmo, entre os músculos inteligentes, a memória e a auto crítica.
Foco no Rubem, foco no Rubem! Concentrou-se no livro, não sem deixar passar entrelinhas, veloz e suave como vôo de beija-flor, o pensamento: Amanhã é dia de abrir portas!

Márcia Leite

domingo, 16 de outubro de 2011

Amar é inevitável

á Ana, Gerard e Pedro Ignácio

viver é preciso
enquanto dias existam
navegar rumo ao porto do infinito
em brancas barcas
olhar nos olhos dos filhos
abrir caminho até o fundo das retinas
e reter o encantamento à eternidade
na companhia das cores vividas
azuis amarelos vermelhos laranjas lilases


menina e rapazes
mensageiros de trégua e paz à minha vida
que dilatavam minhas entranhas
enquanto eu lhes cantava amor
para que não tivessem medo do escuro
e se preparassem para o mundo que viria
senhores do sangue que mantém meu coração vivo
filhos e seus filhos
sorrisos e vozes da minha alma


viver é preciso
amar é inevitável.

Márcia Leite