quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Liturgia da paz interior

Saudade do que se escolhe deixar ir não avisa quando vai chegar. Por isso ela manteve o grande vaso de capim santo bem regado, para que não lhe faltasse o chá de secar lágrimas. Só se escolhe deixar ir aquilo que já não se precisa mais. Precisar de alguma coisa traz uma certa dependência àquela coisa que você acha que está precisando; no final,quando a razão cutuca a emoção, aquela precisão revela-se um hábito, quase um vício. Aí você bota na balança o que há de bom e o que é ruim e se o prato arriar de tal modo que é impossível negar que o lado ruim é muito mais pesado que o bom, tem que tomar coragem e indicar a saída.
Saudade do que se escolhe deixar ir, também é conhecida como saudade de fechar porta. Você até acha, na hora fecha-porta, que a saudade não virá. Mas a saudade chega assim mesmo, porque hábitos se entranham em você e teimam em não te deixar. Tem gente que passa anos lutando contra, tomando banhos de descarrego pra tentar se livrar dos fantasmas e, num nível mais patológico, até tendo sonhos recorrentes com antigos hábitos.
A saudade chegou e chegou juntinho com a escuridão. O que era bom, porque saudade que passa tem que ser noturna, as diurnas são mais difíceis de curar. A noite é a melhor hora de viver saudade, só assim, depois de muito sentir é que você consegue se livrar dela. Não adianta fingir que ela não está lá; ela está ,e se você não a deixar entrar, ela vai te atormentar até você admitir que a sentiu, que ela existe, que é real.
Iniciou o ritual de boas vindas - existem dos mais diversos tipos, porque cada saudade tem uma necessidade diferente. Preparou o chá, sentou-se bem aprumada na cama, costas retas na cabeceira acolchoada que ela mesma fizera, e pegou o livro do Rubem Alves (agradecendo a lembrança do autor nas palavras do amigo que não via há tempos e que encontrara na noite anterior). Bebericando o liquido quente, foi logo chorando, comovida, nas primeiras linhas do bendito. Leu duas páginas e as costas começaram a incomodar. O problema era o peso das lembranças que atropelavam o ritual tão bem planejado. As palavras do escritor embaralharam sob seu olhar que se transformou num olhar seco de um outro sentimento, um misto de raiva e arrependimento dos erros que ela própria cometera na teimosia de apostar nas diferenças. Levantou-se e procurou o bálsamo, mas quem iria aplicá-lo em suas costas doloridas? A dor passou a ser o foco e a saudade foi deixando de existir, mais rápido do que ela esperara e morreu, ali mesmo, entre os músculos inteligentes, a memória e a auto crítica.
Foco no Rubem, foco no Rubem! Concentrou-se no livro, não sem deixar passar entrelinhas, veloz e suave como vôo de beija-flor, o pensamento: Amanhã é dia de abrir portas!

Márcia Leite

domingo, 16 de outubro de 2011

Amar é inevitável

á Ana, Gerard e Pedro Ignácio

viver é preciso
enquanto dias existam
navegar rumo ao porto do infinito
em brancas barcas
olhar nos olhos dos filhos
abrir caminho até o fundo das retinas
e reter o encantamento à eternidade
na companhia das cores vividas
azuis amarelos vermelhos laranjas lilases


menina e rapazes
mensageiros de trégua e paz à minha vida
que dilatavam minhas entranhas
enquanto eu lhes cantava amor
para que não tivessem medo do escuro
e se preparassem para o mundo que viria
senhores do sangue que mantém meu coração vivo
filhos e seus filhos
sorrisos e vozes da minha alma


viver é preciso
amar é inevitável.

Márcia Leite