Ela se preparava para a noite como num ritual de quem cumpre uma promessa. Um
vestido limpo, cabelos penteados com zelo, verificava o sono da filha, ligava a televisão, suspirava alto e
sentava-se no sofá da sala. Ele chegava, nos últimos 2 meses, invariavelmente
às 21h. Ela permanecia sentada, enquanto ele se abaixava ligeiramente, com
hálito de uísque, e beijava seu rosto de leve. Ela levantava os olhos para ele,
sorria um lado da boca, nada falava; ele também não
.
Ele seguia até o quarto do casal, abria a porta do banheiro,
ligava o chuveiro no morno, mesmo sendo verão,
e voltava à sala quinze minutos depois. Naquele momento ela sempre olhava para
ele de um jeito mais carinhoso, porque logo após o banho ele ainda parecia o rapaz por
quem ela se apaixonara há dez anos. Seu rosto brilhava, rosado, contrastando com as sobrancelhas
pretas e grossas, os cabelos ainda molhados, e suas grandes e
pálidas mãos culminadas por unhas rosadas, criteriosamente cortadas, sempre
imaculadas. Aquele sentimento durava exatos 20 segundos, tempo suficiente para
ela levantar do sofá, sair da sala e chegar à cozinha. Todos seus movimentos
eram sincronizados, o que às vezes fazia com que ela risse baixinho dela mesma, imaginando-se num balé aquático,e dependendo do seu dia na loja, era
até capaz de encenar pequenas coreografias entre a pia e o fogão. Os braços
pequenos e ágeis iam de um lado ao outro da cozinha, ora colocando travessas no
micro-ondas, abrindo portas de armários, retirando pratos e talheres para o
jantar, ora abrindo a geladeira e fechando-a com um rápido movimento de perna.
Arrumava a mesa, enquanto ele permanecia com os olhos fixos
na televisão. Quando acabava de colocar a comida à mesa, sentava-se, ainda sem nada
falar. Ele levantava-se do sofá e
sentava à sua frente, na lateral da grande mesa com tampo de vidro. Perguntava
sobre a filha, as vendas, e fazia algum curto comentário sobre seu próprio dia
no escritório. Ela respondia automaticamente. Ele não ouvia as respostas até o
final e já engatava outra pergunta, outro assunto. Eram como gato e rato, de
raça, de laboratório, educados, polidos, distantes.
Naquela noite, o molho de curry do frango tinha ficado menos
denso que o comum. A empregada nova ainda não acertara o ponto do molho, nem do
macarrão. “Preciso lembrar de falar com ela amanhã sobre isso”, pensou. Ele
nada comentou sobre o molho ralo, mas, ao se servir, derramou um pouco do
líquido amarelo sobre a toalha branca, e a mancha encarou os dois
como um grande sinal de alerta. Ela levantou rapidamente e foi à cozinha buscar
um pano úmido para limpar o excesso do molho. Mas o amarelo permaneceu entre os
dois, como prenúncio de alguma coisa diferente. Um transito novo, tenso, surgia no ar. Ela o sentiu como como se mãos
estranhas tivessem encostado em seu peito. Encolheu-se entre os desvãos
arrepiados de seus pensamentos místicos e, pela primeira vez, nos últimos dois
meses, olhou bem nos olhos e perguntou: - João Carlos deu notícia?
Surpreso, engasgando, ele murmurou: - Não, ainda não.
Ela olhou para a mancha, olhou novamente nos olhos dele, e
falou “ Um mês e meio para dar entrada num acordo de separação consensual...Você
não acha que isso já devia ter sido resolvido?
Ele também olhou firme nos olhos dela e respondeu com voz
seca:
- Mariana, essas coisas não são tão rápidas assim, não. Há
que se considerar que tudo tem que ser muito detalhado para evitar qualquer
tipo de interpretação errada mais tarde.
Ela pensou: - Interpretação errada por
parte de quem?
Tudo fora muito civilizado. Ela , de temperamento
normalmente impulsivo, se surpreendera com a própria frieza, quando, há quatro
meses, descobrira que o marido mantinha
um caso com a secretária há três anos. A partir da descoberta, decidiu que as expressões 'mal entendido' e 'mal
interpretado' nunca mais fariam parte de diálogo dos dois.
Findo o jantar, levantou-se e ajeitou os ombros enquanto
caminhava até a cozinha levando as louças sujas. Limpou os restos em
silencio, colocou tudo na lavadora e foi até o quarto da menina, que dormia
pesado, com um leve sorriso no rosto. Ajeitou as cobertas sobre seu corpo e fechou a porta. Subiu as escadas,
despiu o vestido e deitou-se no sofá do estúdio, onde tantas e tantas vezes
fizeram amor depois do almoço.
Na manhã seguinte abriu os olhos lentamente e sorriu para o
céu emoldurado pela parte superior da janela de guilhotina. Sabia que a
montanha estava por trás de sua cabeça, no mesmo lugar onde sempre esteve e
sempre estará, mesmo quando seus olhos não mais puderem ver e sua memória
passar a viver na dos outros.
Virou o rosto, ainda deitada, para o copo com água sobre a
mesa redonda de alabastro e latão, e sorriu quando viu que a água filtrada estava
gaseificada. Sentou-se no sofá, estendeu a mão para o copo e bebeu todo seu
conteúdo de uma vez, acreditando que a água curaria o que ainda precisasse de
cura. Esticou o olhar através das portas de vidro do terraço para verificar a
possibilidade de outros olhares curiosos da construção ao lado. Levantou-se
puxando a camiseta branca para baixo, e na passagem até a escada em direção ao
primeiro andar da casa, sorriu, novamente, um bom dia para a sua
montanha-rainha, coroada por uma pirâmide verde. Desceu as escadas, sentindo as
pernas um pouco enrijecidas, e pensou: Deus, envelheço!
No banheiro admirou-se mais uma vez da enorme quantidade de
líquido que uma bexiga consegue reter durante a noite. Foi até a
cozinha, preparou o café, abriu a porta e recolheu o jornal do dia, colocado
pelo porteiro sobre o capacho da entrada.
Sentou-se à mesa da sala, e iniciou o novo dia; café na mão, jornal nos
olhos. Seu corpo parecia mais leve, solto.
Perdera o excesso de matéria densa, pesada, que carregara durante os
últimos meses. Admirada com a leveza do
ar que agora respirava, olhou em volta vendo a paz e a luz refletida nas
paredes da sala. Era dona de seu nariz, de suas palavras, de seu corpo, e
responsável pela sensação de liberdade no coração. Após meses de monólogos solitários e diálogos
gelados, ela sabia exatamente o que fazer.
Levantou da cadeira e saiu dançando pela sala, enquanto Sol, o papagaio,
gritava exaustivamente da área : - 'Bom-dia, Sol'!
E sol era só o que ela precisava agora, pra florir.
Márcia Leite