quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

VIncent

por entre as grades do terraço
vivo o amarelo da lua quase cheia
sobre a cidade assustada
que neste meu olhar-de-Vincent
tão pacífica se oferece

queria a água itinerante
os desejos mareantes nas margens de seus dedos
os trigais
a ponta do lápis
o carmim que manchava suas telas de paixão
os linhos onde ele derramou suas fúrias
dores, sombras, segredos

conheço os ventos no seu ouvido dilacerado
as perguntas insistentes ecoando no quarto
a cama sem lugar para o corpo
espremido entre centenas de auroras e ocasos
- girassóis sagrados de  um Senhor crucificado

muitas vidas e muitas mortes para um só homem
noites estreladas não confortaram Vincent
jamais foram suas de verdade
por isso a partida
impossível o fardo de tanta luz.

Márcia Leite, em Aos Pés da Montanha, 2009
Imagem: Van Gogh, Corredor no Asilo




domingo, 26 de fevereiro de 2012

Contar andorinhas





quero um gazebo, bem ali
entre a macieira e as rosas
de treliças brancas e forma octogonal
bancos confortáveis em toda volta
com almofadas gordas, soltas, azuis
onde todo final de tarde eu possa descansar
esticar meu corpo e nada escrever
só olhar para o céu
e contar andorinhas até dormir.

Márcia Leite, em Curtos e Definitivos





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Sexta em Santa

(nem todas as santas são Teresa
 nem todas as mulheres são santas, luas ou marés)

a Sexta desfalece nas ladeiras
quase morre na Paixão
Ele passa
envolto no manto das Dores

Marias dos Terços seguem o cortejo
outras se espalham pela tarde
Madalenas acenam véus de abril
escondendo pecados por baixo das saias

poetas silenciam nos bares
e todas as Teresas (santas ou não)
aparam lágrimas no peito

o cão o bêbado o mendigo
o músico o tonto e o bandido
eternizam seus olhares de sarjeta

só quando o bonde range os trilhos na esquina
- e a lua se insinua no colo da sacada
tudo volta tudo urge tudo fala.


Márcia Leite, em Versos Descarados, 2007 e Engenho Urbano, organização
                      Márcio Catunda, Oficina Editores, 2012.
Imagem: Vicariato Episcopal Urbano, Procissão do Senhor morto, em Santa Teresa, Rio/RJ.


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Simbólica II



Não compactuarei quando a mediocridade brindar, levianamente, com cicuta (prerrogativa permitida apenas à homeopatia). Me indignarei, mesmo que no simbolismo da discreta retirada, toda vez que os espelhos girarem na transferência de seus complexos submundos. Não que seja perfeição (longe disso), muito menos por almejá-la (não sou burra), nem por me revestir da (arrogante) armadura de superioridade ou por ser idiota ao ponto de jamais criticar ou aceitar críticas; mas por tentar, ao máximo, ser leal à poesia.
Márcia Leite

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Olhos indesejados

Para você, que não foi convidado e não é bem-vindo, só consigo Greta Garbo: I want to be alone.
Ou, melhor ainda: LEAVE ME, de fi ni ti va men te, ALONE!

Márcia Leite
PS: Isto, além do óbvio, também é um protesto ao fato de não conseguir configurar bloqueio de visitantes indesejados no blogspot.


não sou quem pareço
nem quem vivo
sou quem se esconde

todas as palavras vem da alma
esta, além da visão
além dos dias


aquela, que ninguém vê
protegida, no meio do corpo
que nada insiste.

Márcia Leite
Imagem: Picasso, Garota no espelho