sábado, 21 de novembro de 2009

Piedosa Divina

entre a parreira
e o manacá
de mãe lavadeira
e pai lavrador
nasceu Divina
cresceu magra
comprida
desengonçada
as saias herdadas
das filhas das outras
mostravam joelhos pontudos
- e pernas arqueadas
da janela da casa
ela via
as outras meninas
vestidas de chita
coxas roliças
tranças douradas
perfume de rosa
Divina que cheirava
à roupa lavada
se olhava no espelho
e só via joelhos
surgindo o vermelho
descobriu-se pomba dourada
por dentro das calças
soltou os cabelos
suspirou
aos treze doou a inocência
e o recém-arredondado das coxas
ao padeiro da esquina
depois veio o carteiro
o açougueiro
o bairro inteiro
dava a torto e a direito
mas por algum mistério da vida
nunca engravidou
poucos anos mais tarde
ainda na flor da idade
do dia pra noite
deixou os moços na esquina
e tornou-se beata
(por outro mistério que jamais revelou)
contrita Divina
agora é Piedosa Divina do Claustro Descalça
só doa graças em louvor
de Nosso Senhor
sua fama correu mundo
e todas as putas do vilarejo
oram à Piedosa Divina da Pomba Dourada
do Claustro Descalça
a nova Madalena da beira do Tejo.


Márcia L, in Versos Descarados, 2007
Imagem: Maria Madalena, pintura de Ticiano