sábado, 25 de agosto de 2012

E por falar em arcanjos...

 
Dezembro de 2000

Querem clonar Deus, li nos jornais outro dia. Meu anjo da guarda me contou que Maria sorriu, indulgente,
quando Gabriel lhe contou a novidade. José, na sua sabedoria, fez ouvidos moucos e foi cuidar de um degrau da Escada que rangia. Miguel chegou a pensar em descer e cortar algumas cabeças, mas Rafael pediu clemência. Os Reis Magos esconderam seus agrados. A estrela de Belém benzeu-se e correu céus gritando: heresia, heresia! O Sol, esquentado, provocou uma rápida eclipse (mas quase ninguém notou pois a tarde era chuvosa). O Menino Jesus rolou de rir de seu rebanho traquinas e escreveu num cometa que passava: Crianças, o Amor É - não se fabrica
ou copia.
Márcia Leite, para Rio Total, Ano 2000DC
Esta página é parte integrante da Revista Rio Total
Editoração e Coordenação
IRENE SERRA
irene@riototal.com.br

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Bambuzal

a José Leite

o bambuzal dança no sul
porque a divindade está no sopro

indicando o caminho 

fecho a porta e rumo ao norte
em busca de mim

vou trançar os dedos
nas raízes de meu pai 


fincar o estandarte vermelho
na fenda das minhas dores 


comer a flor de cactus
desaguar minhas vergonhas de sulista


cavar a terra com as mãos de José
para ver brotar o açude mágico

que matará minha sede de justiça

correr entre os pés de mandioca braba
pintar meu rosto com o pó da terra

olhar o mundo com os olhos d’água de Joana
para melhor entender os homens

deitar na caatinga
banhar meu ventre no luar do sertão
reparir meus filhos
e crescer.


Márcia Leite, em Versos Descarados, Ed. OFICINA, RJ 2009

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

dois minutos




tempo suficiente para
a leitura de um soneto
quinze versos livres
entrar e sair de um ataque de nervos
arquitetar uma pequena maldade
mudar de ideia
decidir aceitar o vinho ao lado
tocar algumas pautas de um noturno
acompanhar a lua surgindo detrás da montanha
escolher o desejo certo intuindo  passagem de cometa. 
Márcia Leite, em Lua atravessada 
Imagem: http://pt.cantorion.org/music

domingo, 22 de julho de 2012




Ela se preparava para a noite como num ritual de quem cumpre uma  promessa. Um vestido limpo, cabelos penteados com zelo, verificava o sono da filha,  ligava a televisão, suspirava alto e sentava-se no sofá da sala. Ele chegava, nos últimos 2 meses, invariavelmente às 21h. Ela permanecia sentada, enquanto ele se abaixava ligeiramente, com hálito de uísque, e beijava seu rosto de leve. Ela levantava os olhos para ele, sorria um lado da boca, nada falava; ele também não
.
Ele seguia até o quarto do casal, abria a porta do banheiro, ligava o chuveiro no morno,  mesmo sendo verão, e voltava à sala quinze minutos depois. Naquele momento ela sempre olhava para ele de um jeito mais carinhoso, porque logo após o banho ele ainda parecia o rapaz por quem ela se apaixonara há dez anos. Seu rosto brilhava,  rosado, contrastando com as sobrancelhas pretas e grossas, os cabelos ainda molhados,  e suas grandes e pálidas mãos culminadas por unhas rosadas, criteriosamente cortadas, sempre imaculadas. Aquele sentimento durava exatos 20 segundos, tempo suficiente para ela levantar do sofá, sair da sala e chegar à cozinha. Todos seus movimentos eram sincronizados, o que às vezes fazia com que ela risse  baixinho dela mesma, imaginando-se num balé aquático,e dependendo do seu dia na loja, era até capaz de encenar pequenas coreografias entre a pia e o fogão. Os braços pequenos e ágeis iam de um lado ao outro da cozinha, ora colocando travessas no micro-ondas, abrindo portas de armários, retirando pratos e talheres para o jantar, ora abrindo a geladeira e fechando-a com um rápido movimento de perna.
Arrumava a mesa, enquanto ele permanecia com os olhos fixos na televisão. Quando acabava de colocar a comida à mesa, sentava-se, ainda sem nada falar.  Ele levantava-se do sofá e sentava à sua frente, na lateral da grande mesa com tampo de vidro. Perguntava sobre a filha, as vendas, e fazia algum curto comentário sobre seu próprio dia no escritório. Ela respondia automaticamente. Ele não ouvia as respostas até o final e já engatava outra pergunta, outro assunto. Eram como gato e rato, de raça, de laboratório, educados, polidos, distantes.
Naquela noite, o molho de curry do frango tinha ficado menos denso que o comum. A empregada nova ainda não acertara o ponto do molho, nem do macarrão. “Preciso lembrar de falar com ela amanhã sobre isso”, pensou. Ele nada comentou sobre o molho ralo, mas, ao se servir, derramou um pouco do líquido amarelo sobre a toalha branca, e a mancha encarou os dois como um grande sinal de alerta. Ela levantou rapidamente e foi à cozinha buscar um pano úmido para limpar o excesso do molho. Mas o amarelo permaneceu entre os dois, como prenúncio de alguma coisa diferente. Um transito novo, tenso,  surgia no ar. Ela o sentiu como como se mãos estranhas tivessem encostado em seu peito. Encolheu-se entre os desvãos arrepiados de seus pensamentos místicos e, pela primeira vez, nos últimos dois meses, olhou bem nos olhos e perguntou: - João Carlos deu notícia?
Surpreso, engasgando, ele murmurou: - Não, ainda não. 
Ela olhou para a mancha, olhou novamente nos olhos dele, e falou “ Um mês e meio para dar entrada num acordo de separação consensual...Você não acha que isso já devia ter sido resolvido?
Ele também olhou firme nos olhos dela e respondeu com voz seca:
- Mariana, essas coisas não são tão rápidas assim, não. Há que se considerar que tudo tem que ser muito detalhado para evitar qualquer tipo de interpretação errada mais tarde.
Ela pensou: - Interpretação errada por  parte de quem?
Tudo fora muito civilizado. Ela , de temperamento normalmente impulsivo, se surpreendera com a própria frieza, quando, há quatro meses,  descobrira que o marido mantinha um caso com a secretária  há três anos. A partir da descoberta, decidiu  que as expressões 'mal entendido' e 'mal interpretado' nunca mais fariam parte de diálogo dos dois.
Findo o jantar, levantou-se e ajeitou os ombros enquanto caminhava até a cozinha levando as louças sujas.  Limpou os restos em silencio, colocou tudo na lavadora e foi até o quarto da menina, que dormia pesado, com um leve sorriso no rosto. Ajeitou as cobertas sobre  seu corpo e fechou a porta. Subiu as escadas, despiu o vestido e deitou-se no sofá do estúdio, onde tantas e tantas vezes fizeram amor depois do almoço.
Na manhã seguinte abriu os olhos lentamente e sorriu para o céu emoldurado pela parte superior da janela de guilhotina. Sabia que a montanha estava por trás de sua cabeça, no mesmo lugar onde sempre esteve e sempre estará, mesmo quando seus olhos não mais puderem ver e sua memória passar a viver na dos outros.
Virou o rosto, ainda deitada, para o copo com água sobre a mesa redonda de alabastro e latão, e sorriu quando viu que a água filtrada estava gaseificada. Sentou-se no sofá, estendeu a mão para o copo e bebeu todo seu conteúdo de uma vez, acreditando que a água curaria o que ainda precisasse de cura. Esticou o olhar através das portas de vidro do terraço para verificar a possibilidade de outros olhares curiosos da construção ao lado. Levantou-se puxando a camiseta branca para baixo, e na passagem até a escada em direção ao primeiro andar da casa, sorriu, novamente, um bom dia para a sua montanha-rainha, coroada por uma pirâmide verde. Desceu as escadas, sentindo as pernas um pouco enrijecidas, e pensou: Deus, envelheço!
No banheiro admirou-se mais uma vez da enorme quantidade de líquido que uma bexiga consegue reter durante a noite. Foi até a cozinha, preparou o café, abriu a porta e recolheu o jornal do dia, colocado pelo porteiro sobre o capacho da entrada.  Sentou-se à mesa da sala, e iniciou o novo dia; café na mão, jornal nos olhos. Seu corpo parecia mais leve, solto.  Perdera o excesso de matéria densa, pesada, que carregara durante os últimos meses.  Admirada com a leveza do ar que agora respirava, olhou em volta vendo a paz e a luz refletida nas paredes da sala. Era dona de seu nariz, de suas palavras, de seu corpo, e responsável pela sensação de liberdade no coração.  Após meses de monólogos solitários e diálogos gelados, ela sabia exatamente o que fazer.  Levantou da cadeira e saiu dançando pela sala, enquanto Sol, o papagaio, gritava exaustivamente da área : - 'Bom-dia, Sol'!

E sol era só o que ela precisava agora, pra florir.

Márcia Leite

quarta-feira, 18 de julho de 2012

aramaico




não preciso de reverências 
nem de explicitudes
eu gosto é da perplexidade

só relaxo quando à sombra da árvore mãe
e sou delirante o bastante
para morrer de saudade de quem ainda não conheço

aprecio o valor que não alcanço
desprezo palavras que odeiam
tanto quanto as algozes

sinto dolorosa compaixão
pela tristeza no olhar dos loucos mansos
o vermelho no dos violentos me aterroriza

mudanças me entusiasmam
mas tenho grande dificuldade
para finalizar o que se arrasta

não li a maioria dos filósofos
nem pretendo fazê-lo
tenho outras prioridades

nunca fui craque em palavras cruzadas
troco amiúde o nome das pessoas
ainda não aprendi aramaico
                     ( e quando me sinto péssima é só por isto).

Márcia Leite, em Lua atravessada
Imagem: http://www.gliscritti.it/gallery3/index.php/album_001/Gerusalemme/padre-nostro-aramaico

terça-feira, 10 de julho de 2012

indecisão


às vezes me sinto
como um jarro sem flores
esquecido num canto
com água até a metade
cuja única função
parece ser enlouquecer
numa indecisão excruciante.

Márcia Leite

segunda-feira, 9 de julho de 2012

poema líquido




nas primeiras horas desse dia novo
quando a lua  ainda brilha no intervalo
entre a noite que já não se vê e o cinza claro
meus olhos líquidos de luz oferecida
tomam da aurora os róseos tons alaranjados 

o coração – outrora destemido bandeirante
de galáxias inteiras e buracos brancos
translúcidos de paz e de vontade de viver
desiste do que no ontem foi fadado
e apaga o arco-íris e você. 

Márcia Leite, em  Lua atravessada

sexta-feira, 6 de julho de 2012

A perda de letras e a aniquilação da escritura


 www.apperj.com.br
A Poesia mantém-se viva não apenas através das veias de seus autores ou da leitura de seus apaixonados e nos muitos eventos literários com seus brados e rituais tribais.  Vive também através dos frenéticos - bem vindos -   transmissores da internet, navegando mares cibernéticos e distribuindo palavras num turbilhão de vozes, ampliando seus domínios e vitalidade.  Pena que algumas letras se perdem e criam atalhos que aniquilam a escritura.  É nos versos desvirtuados do poético que uma nova tribo se formou: a dos alpinistas literários.  Quem são os “alpinistas literários”, reversos de nossos versos?  O que aqui chamo de ‘alpinista literário’, é aquele que se utiliza do poema para, uma vez no círculo dos devotos da Poesia,  alcançar alguma notoriedade, apelando para atitudes e palavras antiéticas,  num mundo que - acredita ele - o destacará da multidão (?), amenizando sua noite infértil.  A intenção maior é a autopromoção, e,  para tal, o vaidoso, o antipoeta, não mede esforços, muitas vezes,  tripudiando, com palavras e comentários grosseiros e desdenhosos,  qualquer um que lhe pareça (embora nunca o vá confessar!) ameaça ao status (?) conquistado, ou que acredite não ser ‘importante’ para sua ascensão.  Ora, ser poeta (pelo menos, como eu entendo o exercício da poesia) não é  (apenas) carregar medalhas no peito, vestir fardões, publicar livro, receber prêmios, ou saltitar de evento em evento ao modo das socialites. O poeta jamais vive, ou viverá, unicamente, voltado para si mesmo, ele é habitado por miríades de outros seres e paisagens, é porta-voz,  observador compulsivo, das infinitas formas, dúvidas, qualidades, defeitos, alegrias, dores e amores. O poeta deseja é ser parte da multidão e passar despercebido para melhor observá-la, já que dela se alimenta. O que ele (o alpinista) não alcança - súdito da vaidade exacerbada - é que a Poesia enxerga além. O poeta é um louva-deus no jardim da humanidade, nunca um gafanhoto.
Márcia Leite, em DELET@VEIS http://revistaapperj.blogspot.com.br/2012/03/e-deletveis.html 
Fundada em 11 de abril de 1989, a Associação Profissional de Poetas do Estado do Rio de Janeiro é a primeira e única associação aberta de poetas e declamadores de poesia no país. Foi iniciativa do mestre e professor Francisco Igreja. Essa instituição conta com mais de quatrocentos associados no Brasil e no exterior.  


segunda-feira, 2 de julho de 2012

variedade da espécie


coisas são coisas
qualquer e todas
gente é bem diferente
nem todas são pessoas
algumas são coisas
outras nada.


Márcia Leite

quarta-feira, 27 de junho de 2012


não jogo pedra de rivalidade
nem desperdiço energia com disputas
nos campos da humanidade
- onde não existe obra perfeita
tudo que brota
tem tempo de validade
nenhuma glória é perpétua
toda conquista abstrata.


Márcia Leite

quinta-feira, 21 de junho de 2012

intacta


as tentativas de pedra
protegem a suavidade
são guaritas fortalezas
da delicadeza


nos desafios e testes
me mantenho intacta
temo apenas os momentos
de lucidez dilacerante
que me atropelam
arroxeando os olhos


peregrinações pelas ruas
dos espantos
formaram meus alicerces
baseados nas convicções
de memórias paternas


o reino masculino
sempre me foi generoso
(salvo os enganos cometidos
por excesso de romantismo)


o feminino me mantém
filhos filha pai mãe amigos
todos me inspiram
e me vestem.


Márcia Leite, em Versos Descarados
Imagem: http://fecer.blogspot.com.br/2010/04/as-mulheres-de-pedra.html#axzz1yReWFGfz

quarta-feira, 20 de junho de 2012




pousar as palavras no papel
como se fossem pássaros
moldá-las ao origami

colhê-las no vento
acariciá-las
arranjá-las na ikebana

bebê-las ainda quentes
contemplá-las
reverenciar a harmonia em suas falhas

ouvi-las no vazio dos bambus
e libertá-las
para que sejam em outros.

Márcia L
Imagem: Bosque de bambu Arashiyama Sagano
http://dicionariododanossavida.blogspot.com.br/2012/03/10-lugares-incriveis-2.html

domingo, 17 de junho de 2012

faroleiro



o que quer essa alma
que canta versos lusitanos
com cheiro de mares
campos de trigo e cevada?
de onde ela veio assim reencarnada
em marulho de ondas dos sonhos?
o que quer essa alma num corpo de homem
senhor de incontáveis palavras
que me seduz como um marinheiro
faroleiro das minhas águas?

Márcia Leite
Imagem:http://www.10pt.org/2012/06/mulheres-de-camoes-laura-barbara/

sábado, 16 de junho de 2012

cry me a river



rolam águas de mágoas e abandono 
sobre o planeta
o útero Pacífico de Gaia
expeliu a índica revolta da antiforma

Poseidon agitou o tridente
aumentando seu território
e Atlântida acordou nos subterrâneos dos mares
gritando fantasmas da Indonésia

as geleiras na Antártida 
deslocam-se inexoravelmente
ameaçando os domínios de Ceres
Perito Moreno lacrimeja nos lagos da Patagônia

quebrada a harmonia, o jarro da Temperança
já não verte o líquido da vida
resta-nos ainda o latino choro dos rios
e o canto da Oxum

mas quando
na hora do Imponderável
Lurelei silenciar ao Norte
e Iemanjá recusar as oferendas

o sal que batiza 
será o sal da morte
e o doce que alimenta 
não sobreviverá.

Márcia Leite, em Versos Descarados
Imagem: Google

quinta-feira, 14 de junho de 2012


na escuridão
(quando todos os gatos são pardos)
eu me fecho 
igual flor de cacto.

Márcia Leite, para O voo como saida

segunda-feira, 11 de junho de 2012

O bom de ser mulher





                                                                                                                                                                          (aos meus amigos)

O bom de ser mulher é conseguir enxergar as possibilidades, não no homem que nos revelam, mas no que poderiam, e rejeitam, pela dor que temem. Se me instigam, no tempo de flecha, os contrários, o meu encanto pertence, e apenas, à similaridade. O bom de ser mulher é  a experiência da intensa comoção no momento das lágrimas que reprimem, dos medos que escondem por baixo da armadura que vestem, forjada às decadentes  e hipócritas  regras do que é masculinidade.  E, quando apaixonados, comovem-nos , completamente, seus muitos cuidados  e a obediência, quase canina, aos nossos caprichos, às nossas vontades. Somos o poço do mistério, eles, nossos adoráveis discípulos desajeitados.

Márcia Leite

quinta-feira, 7 de junho de 2012

além da contemplação




é inútil o esbravejar
contra um todo que há
e que não conseguimos viver
não por falta de desejo
por ausência de consenso

sem aproximação permitida
este todo que blasé se exibe à janela
arredio escapa às mãos sedentas
na incompletude disseca-nos as veias
e a poesia se recolhe
                                     

                                    dorme, exaurida, na palavra que morre

Márcia Leite, para O voo como saída
Imagem: Henri Matisse, The blue window