segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Je ne regrette rien

no espaço entre dois dedos de prosa
no perfume do outro [suave]
na borda do cálice
na fronteira do passado [ouvindo Piaf]
me acerto com a mortalidade
mergulho no abismo
sacudo a alma
e recomeço.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010


Os poemas de Teresa

O poema de Teresa

Walmir Ayala

O poema de Teresa

vai sair canto brejeiro

macio de algodão e espuma

farto de rosa de cheiro...

Ah, o poema de Teresa,

ruidoso poema que vem

duma porta muito azul

com carneirinhos pintados,

sapatos de ouro e cristal

nos pés de fada cravados.

Ah, cinderela sozinha,

veio cantar canção triste

de mar e de pescaria

(bem que eu te achava sereia)

mas se eu dissesse que vives

fundas tristezas na vida

ninguém acreditaria.

O poema de Teresa

vai sair cheirando a fogo

em feno de campo aberto.

Parece sede de alcova,

mas Teresa, eu sei, seria

feliz na beira da praia,

pés descalços, voz rasgada,

borralheira descuidada.

O poema de Teresa

vai na roda da carreta.

Deixai que ela durma um sono,

dai-lhe um sonho, a lua tarda,

mas Teresa tem a lua no decote aprisionada.



Teresinha de Jesus, Tetê Azul, minha tia Tetê, hoje só acorda depois do sol cruzar o meio do céu, e com um sorriso, porque Teresinhas retém a alegria durante a vida terrena.Teresinhas cuidam das mães, das irmãs, dos sobrinhos, da família inteira, porque quando chegam ainda lembram. Esta Teresa foi musa do poeta que, sem blasfêmia, com amor (ela jura platônico, eu apenas sorrio...), rezou - à santa ou à mulher? – talvez uma das mais lindas orações que já foi escrita pelo homem:

Prece

Walmir Ayala

Santa Teresa, de vazio peito

(coração que houvera quem despedaçou?)

Coração agora se desfaz em glória.

Glória pela carne, glória pelo gesto,

glória na aspereza da espontânea voz.

Santa Teresa toda coração.

Roga pelos tristes, dona da tristeza!

Guarda o teu poeta, cálida senhora da canção milagre!

Roga pelos mortos, dínamo da vida!

Roga, roga, roga pelos pescadores,

deixa que te amem as amargas bocas;

deixa que te afaguem dedos suicidas;

para todos abre concessão do mito,

dá teu sol de eco para o frágil grito!

Santa! Santa! Santa!

Soçobrar não deixes barcos sem roteiros.

Sê secreta ilha, cordial palmeira, silencioso porto.

E sem mais motivo, para humanizar-se

guarda-te na torre deste teu mistério.

Por farol te tomem pescadores mortos

e te estendam redes de fosforescências!

Santa dos meus dias, roga pelos homens!

Pelos que, como eu, não irão beber-te

pelos dissipados nas profundas fontes,

pois só tu, sagrada, tens preciosa água.

Roga pelos homens

Dê sol aos exaltados, os de olhos baixos

(ambos não te viram, e é de perder o mundo

não estar contigo).

Dá-me a boa morte

que julgardes digna

deste teu poeta.

Nada mais resta do que dar-te o canto.

Nem do antigo ouro te rebordo a capa

Nem andores levo para tua viagem...

Santa dos meus dias

enche de coragem meus olhos vazios.

Lágrima inaldita

pousa na corola desta impaciência

que por ti clamou...

santa Teresa de vazio peito

(coração que houvera

quem despedaçou?)


Teresinha, moça moderna, era a dona da voz rouca mais sensual e da lambreta mais boêmia do Botafogo de então; a Eduardo Guinle ainda terminava na pedreira, logo depois da pracinha, onde eu, menina no balanço, observava sua conversa com o poeta (que por ela esperara desesperados minutos; Teresinhas permitem-se vaidades e são indecisas na escolha das cores de vestir), num dos bancos da praça. Minha tia Tetê, dona de olhos verdes que confundiam o cair das ondas na areia da praia de Boa Viagem, Niterói (onde toda a família, durante alguns anos seguidos, passava férias), afundava os pés na areia, os cabelos louros, salgados, roçando os cílios de prata e movia o corpo, sob o sol de antigos janeiros, vestido em mínimos shorts brancos, indiferente a olhares que não fossem do inspirado menestrel, quando ele, entre outras marítimas eternas palavras, para ela cantava:

Teresa da Praia

Eu não arrancarei do mar, Teresa, este teu corpo

de compacto vento e areia e movediça alga.

Teu corpo degladia com o sol no extremo impulso

e respiras com a boca seca da areia

a hora do grito.

Sim, teu corpo é um clamor aos meus olhos, uma festa

de tecidos sombrios e luminosos a um tempo, nunca inerte

contra a parede do mar tão loucamente ruída.

E corres, e estas tuas pernas compactas são altares de sangue.

A tua cabeça está coroada de sol, menina, e todos

os teus súditos silenciam ante a tua sucessiva explosão de espuma e riso.

Apertam-se contra os teus seios as mãos do vento, as mãos austeras do teu rei!

Ficarás nesta praia sem penhascos, apenas tu rochosa e livre

dourando a fimbria da noite com teu corpo maduro.

Walmir Ayala

O poeta, na década de 60, escreveu muitos e muitos poemas para a moça Teresinha de Jesus e entregou-os, provavelmente numa manhã dourada como a musa, sob o título “Os poemas de Teresa”. Ela os guarda até hoje como a um tesouro porque a magia da poesia é coisa de zelo infinito, assim como ser Teresa musa de Walmir é coisa de infinito zelo. Por isso Teresinha, hoje sem o poeta, dorme até a tarde chegar; para sonhar as palavras de maresia que o sol lhe segreda nas manhãs cariocas que um dia foram totalmente suas e do poeta.

Márcia Leite

sexta-feira, 6 de agosto de 2010




te deixo
às mãos do Deus da Misericórdia
aquele que ampara os que nunca aprendem

te deixo
vingativa
sob este céu de inverno
preso às reflexões
que não te levarão a lugar algum
(já que nunca aprendes)

te deixo
pesarosa
sob a coberta que comprei no outro inverno
quando ainda esperava que aprendesses

te deixo
desolada
sem promessa de voltar.

Márcia Leite, in Aos pés da montanha

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Presa e Predador (divagações manuelinas)


Entender o que esconde a transparência do ventre de Daisy Margarida sempre foi objeto de longas conjeturas nas minhas noites de contemplar lagartixas, insetos e o fascinante balé de vida e morte entre presa e predador.

O mosquito, lá em cima, dissimulado, descansa dos golpes da revista dobrada que empunho na mão direita. Está tão ocupado em disfarçar o próximo ataque que não percebe Daisy Margarida , mais dissimulada ainda que ele, pronta para o bote mortal que excluirá o pequeno vampinseto da face da Terra.

Esqueço a barriga da lagartixa e jogo mais uma para a mulher, eu mesma, deitada: Mosquito tem alma?

Aprendi e acredito que tudo que nasce (voa, anda, come, dorme, vive, morre) tem alma. Sou crédula o suficiente para acreditar até em alma das pedras (mas aí é alma diferente, oriental, toda zen, uma espécie de energia cumulativa, como um armário onde ficam guardadas as energias-pensamentos de quem nela tropeçou ou descansou, ou qualquer outro tipo de contato. Essas coisas de japoneses...)

Sem devaneios, insisto, responda! Mosquito tem ou não tem alma? Existirá um céu e inferno, ou um karma especial para insetos? Se chupou sangue de bebê, por exemplo, voltará mais umas 5000 vezes como mosquito até poder virar um grilo, uma borboleta bonita, ou até mesmo um besouro daqueles grandes que brilham azulados sob o sol? Ou chupar sangue de quem ainda não aprendeu a se defender é pecado tão grave que irá direto viver a solitária eternidade do inferno? Será que inferno de mosquito é barriga de lagartixa? Esta última hipótese me parece bastante crível. Porque, vamos e venhamos, barriga de lagartixa é mesmo um horror. Transparente nebulosa gosmenta, galáxia de líquidos gástricos lagartixenses. Uma fração de segundo dentro do sistema digestivo de lagartixas, mesmo sendo o de Daisy Margarida, aclamada musa, deve ser pior que a eternidade num inferno mais comum.

Enquanto continuo divagando sobre crime e castigo no mundo dos insetos, Daisy M dança o grand finale e o mosquito desaparece dentro de sua boca. Fico por alguns segundos ainda deitada no espanto de sempre, depois levanto para procurar o cd da Enya tentando embarcar numa energia menos surreal, para não sonhar com universos dantescos dentro de barrigas de lagartixas e muito menos com a certeza que estamos todos na mesma cadeia de sobrevivência. Presa e predador. Sinceramente? Não sei o que é pior.


Márcia Leite, Revista Literária Plural, Oficina Editores, RJ/2004
foto: google images

terça-feira, 12 de janeiro de 2010




Feminino IV
(carta resposta à uma amiga)

Rio de Janeiro, maio de 2005

Fiquei já ansiosa por sua chegada próxima, Cilha. Vamos programar nossas conversas. Temos que nos reabastecer.
Achei bacana essa 'fazedura' de lista de prioridades, e nem é virada de ano! Mas como Marte está em seu momento mais próximo da Terra desde os primórdios do registro da vida conhecida do planeta, deve ser por isso. Espera-se grandes mudanças climáticas, e como nós, mulheres maduras, adoramos essas destemperanças ocasionais em nosso climatério, fica tudo meio 'é agora'. As suas amiguitas aí são mesmo uma decepção. Uma querendo fotografar os bichinhos, filhos das outras, e não importando quais; provavelmente por carência afetiva de gente, derrete-se toda por uns bichanos que não raciocinam, puro instinto, e como ela é simpática, suas donas irão adorá-la e, com certeza, posar junto aos bichinhos para sua lente gentil e deleitá-la pelos próximos anos com sorvetes, hamburgers e o que quer que seja que a tenha feito engordar assim, além da solidão. Mas essa ainda deve ter alguma coisa pra trocar. A outra, a das críticas, coitada, é típica. Sem comentários.
Sua lista de prioridades está transbordando auto estima, Cilha. Adorei a valorização do prazer pessoal e da qualidade. Muito bom.
A minha anda muito simplória, prosaica e poética ao mesmo tempo. Quero ver Marte ao lado da Lua e sentir a sensação de todo o mistério de beleza do Universo e da Criação me envolver em espanto deliciado. Guardar essa imagem nos olhos e na mente até o fim dos meus dias. Quero gravar a sensação de que a minha importância e conhecimento é um grão de areia perto da infinitude de Deus. Quero cultivar a humildade frente a mais um espetáculo que vem do conhecimento gerador de vida, e permanecer assim. Quero que o fim dos meus dias seja leve e gracioso na certeza da existência de maravilhas a descobrir depois. Quero que este fim esteja em um futuro ainda muito distante, porque preciso ficar velhinha e assanhada, pra cumprir as promessas todas.
Quero perder o medo das abstrações e até das simples menções, viver a vida e não 'ouvir falar'. Quero deitar por terra definitivamente todos e quaisquer preconceitos que eu ainda sinta para viver os momentos em toda sua plenitude, valorizar ainda e cada vez mais o sentimento amoroso que me é oferecido, perder a mania de não querer perder o controle das situações que não se pode mesmo controlar e entregar a Deus toda a minha confiança no caminho da felicidade que me é destinada. Quero amar um homem que me ame do mesmo jeito que eu entendo o amor: intensamente, honestamente, com muito romance, e, confesso sem hipocrisia, confortável financeiramente (sem grandes preocupações com o pão nosso de cada dia, e a conta de luz, do telefone, a banda larga do computador), com mimos e livros, com presentinhos inesperados, com juras de amor eterno, entremeado de alguns poemas ou prosa (próprios ou não), com música de fundo, vinho tinto ou cerveja gelada e muitas comidinhas à la Vinicius. Quero continuar meu caminho zen, conservar a paciência que aprendi à duras penas, a leveza do entendimento que tudo tem seu tempo. Quero sorvete de chocolate com morangos e champagne no verão, uma cama bem grande, forrada de algodão puro, pra viver o sonho e a paixão. É vital que eu faça um curso de bordado para criar flores em batas e bolsas ciganas que me remetam à vidas passadas nas estepes russas. E acabo de pensar que é também questão de vida ou morte o som de balalaikas no meu próximo encontro amoroso!
Estou certa que o céu de agora está atento à nossa listinha e pronto para conspirar a favor!
Beijos e até!
Mar


Márcia Leite, em Feminino (Mudanças Clináticas)