quarta-feira, 16 de novembro de 2011

cebolas




me pergunto se as cebolas que chorei
debruçada sobre a pia
contam pontos para a ascensão
e se terei direito a pontos extras
por sacrifício praticado em favor de outros

descascar cebolas - antes do truque das facas molhadas
torturava as minhas meninas dos olhos
abnegada, eu me dedicava
ao picar dos círculos roxos ou brancos
que dariam o tempero exato aos pratos

se alguém percebia o suplício
eu nunca soube
sei das lágrimas enxugadas
na palma da mão esquerda
e que ardiam na alma
se as notícias do dia tivessem gosto acre
ou das cócegas no nariz caso as lembranças
fossem cheiro de maçã assada na panela

às vezes ousava jantares quase sonetos
menu cuidadosamente elaborado
mas nunca consegui a plenitude desejada
na verdade
tudo era apenas
parte de uma grande cena
onde a fala principal era do vinho que acariciava
o céu da boca
contracenando com um caso engaçado
entre um prato e outro

a toalha combinando com os cálices
guardanapos repousados com arte
flores e velas boiando no bowl azul
no centro da mesa

entre uma passada e outra
da sala à pequena cozinha
eu cantarolava na expectativa de uma boa prosa
que quase nunca acontecia
mas me contentava em observar
os olhos dos convidados
suas reações, seus gestos
- que me renderam muitos versos
e só agora entendo que foi por isso.

Márcia Leite, em Aos Pés da Montanha, Oficina Editores, 2009

Um comentário:

Luis Fernando disse...

ainda bem que esse belo poema é acebolado!
já imaginou se fosse de pimentão!
não gosto! rs