quinta-feira, 17 de abril de 2008

Augusta, a Musa.

Minha tia , inacreditavelmente, está de partida para os campos do Senhor. E, com certeza, para os campos reservados aos que desceram na mesma nuvem de Van Gogh. Campos exuberantes, coloridos, vibrantes, como a Vida deveria sempre ser, do jeito como o Criador a idealizou. Mas Ele nos deu o tal do livre arbítrio...
Minha musa Augusta, tia e madrinha, inspiração. Consolo dos meus olhos e pensamentos, nas horas tristes, respirando sua vitalidade e poder de superação e me fortalecendo neles. Meus risos e gargalhadas nas horas de descontração.
Teve dois filhos, perdeu-os cedo e, ninguém percebia que carregava-os na memória (longa, 85 anos de memória de vivências e amores) e no coração. Os que escolheram o caminho amargo da crítica, do julgamento, da insensibilidade, chegavam a acusá-la de 'nunca ligou muito para eles'. Alguns sofrem 'para fora', para o público, adoram a postura de vítimas da Vida. E sem nenhuma real tragédia, apenas alguns contratempos, contabilizada nos seus dias...Alguns reclamam de tudo, de dor de cabeça, do cachorro que late no vizinho, da pobre da empregada que se atrasa, do pássaro que canta alto na manhã (acreditem!), e julgam, julgam, rotulam, apontam...Ela não, raríssimas vezes deixava entrever tristeza no olhar, os mais sensíveis conseguiam ouvir, entrelinhas, a dor guardada dentro do peito, como toda grande dor o é, em um ou outro comentário que escapava, do nada: "Eu gostaria que meus filhos fossem almoçar comigo todos os dias. Morar na mesma casa não daria muito certo, mas que fossem, diariamente, para o almoço ou lanche." Eu me calava ao ouvir isso, respeitando a Augusta que poucos queriam ver. As pessoas invejam a luz dos destemidos...Eu a imaginava em suas noites de solidão, chorando, escondida, a saudade. Mas ela rapidamente, engatava em outro assunto, engraçado, delirante e seguia Augusta.
Com mais de oito décadas é ainda linda, elegantíssima, vaidosa ao extremo, seus olhos jamais passaram dos vinte anos. Me contou que sua ama-de-leite fora uma cabra. Eu fiquei em extâse ouvindo aquilo e comecei a entender o mistério do eterno encantamento daquela tia. Ela dizia, e seus olhos de jade brilhavam enquanto falava: Papai mandava mamãe soltar a cabra quando eu chorava (e se não o fizesse ela arrebentaria a corda ao ouvir meu choro) e ela vinha correndo, pulava em cima da cama de mamãe e eu mamava direto de suas tetas. Sou como Rômulo, dizia ela gargalhando e brilhando toda!
Augusta montava cavalo sem sela com meus dois outros tios que já se foram, C. Augusto e J. Augusto. Cavalgavam pelos domínios da fazenda no Espírito Santo. E quando meu avô, enlouquecido, doente de tristeza pela morte dramática de seu caçula - afogado na imensa cisterna (ou o que o valha) da fazenda, largou tudo, vendendo sua parte a preço de banana, deixando a família na casa de um grande amigo - foi ela que, após algum tempo, cobrou do tal amigo do meu avô os favores que ele devia a seu pai e com o pouco dinheiro que conseguiu, aos 15 anos, botou a mãe Angélica e a penca de irmãos mais novos num trem rumo ao Rio de Janeiro e ao pai perdido. E a partir daí vem toda uma história de luta que um dia, com certeza, contarei.
Não faltou glamour na vida de Augusta. Pelo contrário, abundou. Amores teve-os aos montes. Grandes amores. Homens apaixonados, inclusive, e especialmente, um engenheiro português, pai de seus dois únicos filhos. Este, por sua vez, além de muito rico e elegante, era de uma beleza física de impressionar. Pouco me lembro dele, era muito criança, mas sua foto até hoje na cabeceira dela (apesar do último marido, apaixonadíssimo até hoje, dos últimos 40 anos) me deixa sempre boquiaberta.
Augusta gastava a rodo as 'abóbrinhas', como ela chamava o dinheiro daquela época. Uma vez, contou-me ela, gastou toda a gordíssima mesada (estamos falando dos anos antigos...) e mandou contas não pagas para o escritório do meu tio. Este chamou-a e perguntou: Mas eu não te dei muitas notas, Augustinha? Gastou tudo em quê?
- Em presentes para meus parentes e amigos. - (e era verdade, sempre foi generosa) -
Aí, rindo, imitou-o falando com o sotaque de engenheiro de Coimbra: "Mas tu és mesmo uma perdulária, Augustinha!"
Ao que, isso ela contava e contava inúmeras vezes nos últimos anos - sempre às gargalhadas - minha prima (talvez com 4 ou 5 anos na época) olhou para o pai e disse: Eu também, papai! Eu também!
E ria e ria toda vez que contava isso, explicando: Ela só via e ouvia o pai falar coisas boas para mim, então deve ter achado que aquilo era algum elogio!
Ao morrer este meu tio pediu aos filhos que cuidassem de Augusta até o final. E ambos o fizeram e ainda o fazem, mesmo depois de mortos.
Augusta, minha tia e musa, está entubada num cti. A última vez que estive com ela, semana passada, no hospital, vi seus olhos de estrela brilharem para mim, vi como falava sem parar, mesmo com aquela máscara de oxígênio pendurada no rosto. Vi também seu braço direito todo roxo, em derrames das picadas das agulhas naquela pele branca e frágil.
Chorei discretamente, como choro agora, neste momento, vendo Augusta.

O que mais dói, o mais inaceitável disso tudo é saber que Morte não combina com ela. Não deveria fazer parte da sua história, sempre acreditei que ela viveria para sempre, pois ela, sereia-rainha desta família de muitas mulheres, é a VIDA.
Márcia Leite

Um comentário:

Anônimo disse...

O que seria indecifrável?
O amor? As mazelas? As desventuras?
Indecifrável seria não permear a doce sensibilidade, ou não experimentar emoção ao ler de Augusta...
A mulher que não temeríamos ser.

Lindo!!!!
Barbarella Jovanholi