domingo, 22 de julho de 2012




Ela se preparava para a noite como num ritual de quem cumpre uma  promessa. Um vestido limpo, cabelos penteados com zelo, verificava o sono da filha,  ligava a televisão, suspirava alto e sentava-se no sofá da sala. Ele chegava, nos últimos 2 meses, invariavelmente às 21h. Ela permanecia sentada, enquanto ele se abaixava ligeiramente, com hálito de uísque, e beijava seu rosto de leve. Ela levantava os olhos para ele, sorria um lado da boca, nada falava; ele também não
.
Ele seguia até o quarto do casal, abria a porta do banheiro, ligava o chuveiro no morno,  mesmo sendo verão, e voltava à sala quinze minutos depois. Naquele momento ela sempre olhava para ele de um jeito mais carinhoso, porque logo após o banho ele ainda parecia o rapaz por quem ela se apaixonara há dez anos. Seu rosto brilhava,  rosado, contrastando com as sobrancelhas pretas e grossas, os cabelos ainda molhados,  e suas grandes e pálidas mãos culminadas por unhas rosadas, criteriosamente cortadas, sempre imaculadas. Aquele sentimento durava exatos 20 segundos, tempo suficiente para ela levantar do sofá, sair da sala e chegar à cozinha. Todos seus movimentos eram sincronizados, o que às vezes fazia com que ela risse  baixinho dela mesma, imaginando-se num balé aquático,e dependendo do seu dia na loja, era até capaz de encenar pequenas coreografias entre a pia e o fogão. Os braços pequenos e ágeis iam de um lado ao outro da cozinha, ora colocando travessas no micro-ondas, abrindo portas de armários, retirando pratos e talheres para o jantar, ora abrindo a geladeira e fechando-a com um rápido movimento de perna.
Arrumava a mesa, enquanto ele permanecia com os olhos fixos na televisão. Quando acabava de colocar a comida à mesa, sentava-se, ainda sem nada falar.  Ele levantava-se do sofá e sentava à sua frente, na lateral da grande mesa com tampo de vidro. Perguntava sobre a filha, as vendas, e fazia algum curto comentário sobre seu próprio dia no escritório. Ela respondia automaticamente. Ele não ouvia as respostas até o final e já engatava outra pergunta, outro assunto. Eram como gato e rato, de raça, de laboratório, educados, polidos, distantes.
Naquela noite, o molho de curry do frango tinha ficado menos denso que o comum. A empregada nova ainda não acertara o ponto do molho, nem do macarrão. “Preciso lembrar de falar com ela amanhã sobre isso”, pensou. Ele nada comentou sobre o molho ralo, mas, ao se servir, derramou um pouco do líquido amarelo sobre a toalha branca, e a mancha encarou os dois como um grande sinal de alerta. Ela levantou rapidamente e foi à cozinha buscar um pano úmido para limpar o excesso do molho. Mas o amarelo permaneceu entre os dois, como prenúncio de alguma coisa diferente. Um transito novo, tenso,  surgia no ar. Ela o sentiu como como se mãos estranhas tivessem encostado em seu peito. Encolheu-se entre os desvãos arrepiados de seus pensamentos místicos e, pela primeira vez, nos últimos dois meses, olhou bem nos olhos e perguntou: - João Carlos deu notícia?
Surpreso, engasgando, ele murmurou: - Não, ainda não. 
Ela olhou para a mancha, olhou novamente nos olhos dele, e falou “ Um mês e meio para dar entrada num acordo de separação consensual...Você não acha que isso já devia ter sido resolvido?
Ele também olhou firme nos olhos dela e respondeu com voz seca:
- Mariana, essas coisas não são tão rápidas assim, não. Há que se considerar que tudo tem que ser muito detalhado para evitar qualquer tipo de interpretação errada mais tarde.
Ela pensou: - Interpretação errada por  parte de quem?
Tudo fora muito civilizado. Ela , de temperamento normalmente impulsivo, se surpreendera com a própria frieza, quando, há quatro meses,  descobrira que o marido mantinha um caso com a secretária  há três anos. A partir da descoberta, decidiu  que as expressões 'mal entendido' e 'mal interpretado' nunca mais fariam parte de diálogo dos dois.
Findo o jantar, levantou-se e ajeitou os ombros enquanto caminhava até a cozinha levando as louças sujas.  Limpou os restos em silencio, colocou tudo na lavadora e foi até o quarto da menina, que dormia pesado, com um leve sorriso no rosto. Ajeitou as cobertas sobre  seu corpo e fechou a porta. Subiu as escadas, despiu o vestido e deitou-se no sofá do estúdio, onde tantas e tantas vezes fizeram amor depois do almoço.
Na manhã seguinte abriu os olhos lentamente e sorriu para o céu emoldurado pela parte superior da janela de guilhotina. Sabia que a montanha estava por trás de sua cabeça, no mesmo lugar onde sempre esteve e sempre estará, mesmo quando seus olhos não mais puderem ver e sua memória passar a viver na dos outros.
Virou o rosto, ainda deitada, para o copo com água sobre a mesa redonda de alabastro e latão, e sorriu quando viu que a água filtrada estava gaseificada. Sentou-se no sofá, estendeu a mão para o copo e bebeu todo seu conteúdo de uma vez, acreditando que a água curaria o que ainda precisasse de cura. Esticou o olhar através das portas de vidro do terraço para verificar a possibilidade de outros olhares curiosos da construção ao lado. Levantou-se puxando a camiseta branca para baixo, e na passagem até a escada em direção ao primeiro andar da casa, sorriu, novamente, um bom dia para a sua montanha-rainha, coroada por uma pirâmide verde. Desceu as escadas, sentindo as pernas um pouco enrijecidas, e pensou: Deus, envelheço!
No banheiro admirou-se mais uma vez da enorme quantidade de líquido que uma bexiga consegue reter durante a noite. Foi até a cozinha, preparou o café, abriu a porta e recolheu o jornal do dia, colocado pelo porteiro sobre o capacho da entrada.  Sentou-se à mesa da sala, e iniciou o novo dia; café na mão, jornal nos olhos. Seu corpo parecia mais leve, solto.  Perdera o excesso de matéria densa, pesada, que carregara durante os últimos meses.  Admirada com a leveza do ar que agora respirava, olhou em volta vendo a paz e a luz refletida nas paredes da sala. Era dona de seu nariz, de suas palavras, de seu corpo, e responsável pela sensação de liberdade no coração.  Após meses de monólogos solitários e diálogos gelados, ela sabia exatamente o que fazer.  Levantou da cadeira e saiu dançando pela sala, enquanto Sol, o papagaio, gritava exaustivamente da área : - 'Bom-dia, Sol'!

E sol era só o que ela precisava agora, pra florir.

Márcia Leite

3 comentários:

fátima disse...

Lindo texto, além de certeiro,sim por ser a dura realidade de algumas mulheres,mas a protagonista da história aprendeu com os próprios erros que xingar,esbravejar nada faria para mudar os acontecimentos,e resolveu agir com sabedoria e muita calma...Às vezes esse pode ser o melhor caminho a seguir diante de tal situação...Parabéns mais uma vez pelo belíssimo texto....

Márcia Leite disse...

Obrigada, Fátima, pela visita e pelo comentário. Benvinda!

PAULO TAMBURRO. disse...

Márcia,

acabo de ler a mais fidedigna tradução de uma imagem que sempre me acompanha,qual seja,a de uma uma lagarta em seu casulo escuro, com aquelas gosmas pegajosas da feia natureza grudenta e a metamorfose em borboleta,linda,colorida,voando em céu azul de brigadeiro,sol quente e
mormaço,acalentando todo um passeio de amor que aquela breve vida de borboleta terá.


Neste caso,o que para a lagarta foi o fim do mundo, para Deus foi o nascimento de uma esvoaçante e admirável borboleta a conquistar espaços,antes inatingíveis.

Nádia,este seu lindo texto é também impactante para emotivos filhos de italianos, como eu,chorões,melosos e acostumados os berros lamuriosos das carpideiras, contratadas ao preço de algumas poucas purpetas, sanduiches de mortadela e um copo de vinho tinto de qualidade duvidosa.

Como vê sou fruto, vitima ou remanescente de pais Calabreses de Consensa,de uma Itália que nunca conhecí mas que,sei diferenciar todos os seus aromas e belezas,pois eram tantos os italianos que me cercavam com seus variados dialetos que,sempre penso que a realidade, jamais seria tão encantadora quanto as minhas fantasias , sobre ela.

E talvez aqui,esteja pedindo emprestado ao Nelson Rodrigues, sua frase que dizia:

"Se meus fatos não condizem com realidade , então que se dane esta tal da realidade".

Optei pela Itália que lia, ouvia e sentia-lhe o calor através dos meus pais.

E quando você falou do sol liberdador que aquela mulher sentindo-lhe aquecer a alma descobriu que vivia,só peço para lembrá-la,o outro lado da moeda.

Falo de Ícaro,que querendo atingir o sol,colou suas asas com cera inapropriada que derreteu e despencou muito antes de lá chegar.

Nunca cheguei à Itália,Ícaro ao sol.

E volto ao reino das fantasias:

Sabe Nádia, as borboletas já nascem com asas, mas quando temos que colocá-las no nosso corpo para
sair da mesmice de um chão intragável, é sempre necessário que este plano de vôo seja,perfeitamente avaliado, como o são os cálculos de reentrada na atmosfera das capsulas espaciais.

Ao menor erro,tudo vira cinzas.

Então, restaria nos socorrermos com Fenix.

Se é que me fiz entender!

Um abração carioca.